Um mais um igual a três

terça-feira, setembro 19, 2006

A propósito:

É esta a atitude.


O poema é de Elisa Lucinda, a voz é de Ana Carolina, mas acho que o sentimento é de todos nós. Se não é, devia ser.

Meu coração está aos pulos!
Quantas vezes minha esperança será posta à prova? Tudo isso que está aí no ar: malas, cuecas que voam entupidas de dinheiro,

Do meu dinheiro, do nosso dinheiro, Que reservamos duramente para educar os meninos mais pobres que nós. Para cuidar gratuitamente da saúde deles e dos seus pais. Esse dinheiro viaja na bagagem da impunidade e eu não posso mais.

Quantas vezes minha esperança vai esperar no cais? É certo que tempos difíceis existem para aperfeiçoar o aprendiz. Mas não é certo que a mentira dos maus brasileiros venha quebrar no nosso nariz.

Meu coração tá no escuro. A luz é simples, regada ao conselho simples de meu pai, minha mãe, minha avó E dos justos que os precederam: “Não roubarás”. “Devolva o lápis do coleguinha”. “Esse apontador não é seu, minha filha”.

Pois bem, se mexeram comigo, Com a velha e fiel fé do meu povo sofrido, Então agora eu vou sacanear:Mais honesta ainda vou ficar!

Só de sacanagem!Dirão: “Deixa de ser boba, desde Cabral que aqui todo o mundo rouba” E eu vou dizer: “Não importa, será esse o meu carnaval, vou confiar mais e outra vez”. Eu, meu irmão, meu filho e meus amigos. Vamos pagar limpo a quem a gente deve e receber limpo do nosso freguês.

Com o tempo a gente consegue ser livre, ético e o escambau. Dirão: “É inútil, todo o mundo aqui é corrupto, desde o primeiro homem que veio de Portugal”. E eu direi: “Não admito, minha esperança é imortal”. E eu repito: “Ouviram? IMORTAL!”

Sei que não dá para mudar o começo Mas, se a gente quiser, Vai dar para mudar o final!

Eu também estou indignado!

Faço minhas as palavras de Leonor Pinhão.

quinta-feira, junho 22, 2006

"Ah e tal, achado não é roubado"

Agarrou a bolsa, certificando-se de que ninguém o observava. Não tencionava ficar ali. Afastou-se a passos largos, apressado pelos olhares imaginários que dardeavam as suas costas. Algumas pessoas chamariam a este medo de ser visto “consciência”. Na realidade, não passava de simples medo de ser apanhado. Não ia calhar bem, com a folhinha de cadastro que já tinha às costas, ser caçado com uma bolsa que não era sua , a correr com cara de culpado na direcção exactamente oposta à da esquadra da polícia. Assim que virou a esquina, o seu coração acalmou. Estava safo, ninguém vinha a correr atrás dele, não se ouviam gritos ao longe. Enquanto andava, abriu a bolsa. Desligou logo o telemóvel que lá encontrou dentro, não fosse o diabo tecê-las e aquilo tocar numa altura menos apropriada

Entrou em casa pé ante pé, tentando ser tão silencioso quanto as tábuas de madeira do chão o permitiam. Passou pela cozinha – vazia. Passou pela sala – vazia. Que sorte, estava sozinho. Desligou o modo “ninja” e entrou no quarto sem preocupações. Foda-se!

- João Paulo Maria, onde é que andaste?!

Já não bastava emboscá-lo ali no quarto, ainda usava os três nomes. Os três nomes anunciavam sempre merda.

- Na escola, onde é que querias que andasse?! – Experimentou, usando do seu ar mais incrédulo, para ver se a mentira pegava.

“Spaaa”. Levou logo um chapadão que lhe deixou marcada a mãozinha pesada da mamã na bochecha. A mentira não tinha pegado.

- Ouve lá, julgas que eu te deixo enganar-me assim? O teu pai consegue porque é como é, mas tu, meu estafermo, a ti conheço-te eu de ginjeira! Esqueces-te que fui eu quem te pôs cá fora?!

- Mããã, não fiz nada! – Ensaiou, pondo uma expressão magoada na cara.

“Spaaa”. A mãe demonstrou-lhe novamente o carinho que as mentiras lhe inspiravam, desta vez com as costas da mão.

- Já te disse, não me mintas! A tua professora ligou-me a dizer que não apareces na escola há dois dias. Que é que andaste a fazer nos últimos dois dias pra não ires à escola?

Não havia uma resposta certa pra esta pergunta.

- Tive por aí com uns amigos – Disse, acompanhando as palavras com um gesto de protecção. Os braços pouparam-lhe a cara a mais dois ou três estalos.

- Por aí?! Por aí?!?! Mas tu és parvo ou quê?! Em vez de ires pra escola a ver se te tornas alguém, ficas por aí feito um vadiozinho qualquer?! Olha que eu ponho-te porta fora, malinhas e tudo, e aí é que vais ver o vadio que te tornas. Dezanove anos e no nono ano. Andas a ver se apanhas o teu primo de cinco anos, é? Tás feito um belo inútil. Para começar ficas de castigo. O resto da tarde vais passá-la aqui. Lá mais pra noite logo vemos como é que tratamos disto.

Tendo despejado a sua raiva, a mãe saiu, batendo com a porta. Voltou quinze segundos depois para a trancar. De castigo… O que um gajo aturava só pra ter comida, cama e roupa lavada… João Paulo, ou Jopa, como os amigos o chamavam, esfregou a cara. Já tinha levado piores. Ao menos, no meio dos gritos, ela nem tinha reparado na bolsa que ele trazia na mão e que rapidamente atirara pra trás da cama. Apanhou-a do meio do um monte de roupa suja que se acumulara entre a cama e a parede, abriu os fechos e sacudiu-a pra cima da cama. Telemóvel, umas chaves de casa, umas fitas azuis claras com um ar meio estranho, e uns quantos cartões. Era quase da mesma idade que ele, o tipo. Tinha ar de betinho, pelo menos a julgar pela fotografia do B.I.. A este tipo não o chateava nada roubar. Roubar não. Levar. A verdade é que nem tinha feito nada de errado. A bolsa tava pra ali atirada em cima do banco do jardim. Da próxima ele que tivesse mais cuidado. No meio dos papeis, um bónus. Dois, na verdade. Vinte euros e um preservativo. Belo saque, este. E fácil. Tinha era que se desfazer do telemóvel bem rapidinho. Por esta altura o otário já devia tar na esquadra a fazer queixa. Não convinha muito que, numa das “buscazinhas corporais” que estava habituado a receber dos policias locais, aparecesse um telemóvel roubado. Abriu a janela, passou para o lado de fora e agarrou-se ao rebordo. Deixou-se cair. O primeiro andar não era propriamente alto. Pôs a bolsa à cintura. Há uns tempos que já andava pra comprar uma cena daquelas, até tinha um certo estilo. Melhor assim. De caminho aproveitou e deitou a papelada toda que vinha na bolsa pró lixo, documentos do paspalho incluídos.

Foi com o seu arzinho gingão que os amigos o viram aparecer no café. Agora toda a gente andava assim, a abanar-se de um lado pró outro. Dava um certo ar de duro. Despachou rapidamente o telemóvel pró Kapê, um palhaço qualquer amigo do Vodkas, e meteu os trinta euros ao bolso. Tinha mais que fazer do que tar ali a queimar tempo. Bem, na verdade não tinha, mas também não lhe apetecia ficar ali no meio daquela malta. Foi pró Colombo. Ver umas lojas até parecia boa ideia, agora que tinha cinquenta euros no bolso. Meteu-se no autocarro. Duas paragens depois de ter entrado, entrou uma tipa óptima, de saiinha curta aos quadrados, ar de menina de escolinha privada. Passou por ele sem sequer olhar. “Deves ter a mania, putinha!”, pensou, olhando-a com um esgar de desprezo. Decidiu que a ia chatear um bocado, só pra não se armar em parva. Foi-se sentar no banco ao lado do dela, apenas com o corredor entre os dois. Virou-se pra ela e começou a olhá-la fixamente. Via-se que tava incomodada. Disfarçava, olhava pra janela, mas aquela cara de quem lhe cheirava a merda dizia tudo. Ficou naquilo uns bons dez minutos, enquanto não chegava ao destino. Era divertido ver as “meninas” borradas de medo. Ao sair do autocarro, mandou-lhe um beijinho. Ela mandou-o pra um sitio bonito com o dedo médio. Ainda tava a umas centenas de metros do centro comercial. Fazia o caminho cheio de estilo. Nem reparou no carro que o seguia devagar. Nem ouviu o estalo bem alto que a porta do carro fez ao abrir-se, tão concentrado que ia na pose de macho. Ia bem distraído. Azar…

Antes sequer de se aperceber do que lhe estava a acontecer, já estava no chão. Tinha levado um pontapé algo violento na parte de trás do joelho, o que o deixou… de joelhos. A orelha direita e área circundante foram as vítimas seguintes, alvos de outro pontapé, menos forte, mas suficientemente bem colocado pra lhe deixar a cabeça a tinir. Caiu de lado. Quando olhou pra cima tava um otário a olhar pra ele com um ar raivoso, quase a espumar da boca.

- Selvagenzinho de merda, julgavas que não dava contigo, era? Granda galo! Põe-te mas é de pé, vá!

Não fazia a mínima ideia de quem era o tipo, nunca o tinha visto mais gordo. De qualquer forma, não ia ficar ali deitado no chão enquanto o cabrão o enchia de porrada. Levantou-se, a custo, visto que a perna esquerda tinha perdido uma boa parte da funcionalidade. Mal se tinha posto direito, ou pelo menos, o mais próximo de direito que conseguia, já tinha levado uma pancada seca nos tomates. Agoniado, já pra não falar de bem dolorido, agarrou-se às partes. Inclinou-se apenas o suficiente para sentir um joelho a esmagar-lhe a cana do nariz e levar uns quantos dentes pelo caminho. Foi outra vez parar ao chão, desta vez não tão certo de se conseguir tornar a levantar. Sentiu o tipo aproximar-se. Primeiro, tirou-lhe a bolsa da cintura, abrindo-a. Não pareceu muito satisfeito. Revistou-o, tirou-lhe o dinheiro do bolso direito, as chaves de casa e o telemóvel do esquerdo, a carteira do bolso de trás. Examinou os ganhos por uns momentos.

- Puto, sei onde é que moras, tenho as tuas chaves de casa e o teu telemóvel. Amanhã vou estar à tua porta, e tu vais ter o meu telemóvel e os meus documentos todos prontinhos pra me dar. A opção é uma sova bem maior que esta e uma visitinha à esquadra. Tu decides.

Meteu-se no carro e foi-se embora. João Paulo ali ficou, com a cara e outras partes do corpo feitas em papa, a considerar se uma carreira como engenheiro ou advogado não seria uma boa alternativa à carreira de criminoso.

Em honra do espanholito que agora se passeia com a minha carteira e o meu telemóvel pelas ruas de Albacete.

sexta-feira, junho 16, 2006

Pensamento do dia

Somos muitos, andamos escondidos e pensamos assim.

Pedindo emprestadas as palavras da Escrevedora, "plagiar é implicitamente admirar".

domingo, junho 11, 2006

De vez em quando sou uma Preguiça

"Há preguiças de dois dedos e preguiças de três dedos, sendo o caso determinado pelas patas dianteiras dos animais, já que todas as preguiças têm três garras nas patas traseiras.(...) É uma criatura altamente intrigante. O seu único verdadeiro hábito é a indolência. Dorme ou descansa, em média, vinte horas por dia.(...) A preguiça está mais activa ao pôr do sol, usando aqui a palavra activa no seu sentido mais descontraído.

Move-se ao longo do ramo de uma árvore na sua característica posição invertida, a uma velocidade aproximada de quatrocentos metros por hora. No solo, rasteja até à sua próxima árvore à média de duzentos e cinquenta metros por hora, quando motivada, o que é quatrocenta e quarenta vezes mais lento que uma chita motivada. Não motivada, percorre entre quatro e cinco metros por hora."

Pi Patel in "A vida de Pi", de Yann Martel

sexta-feira, junho 02, 2006

And so it is....

Hoje estou angustiado. Foi a minha última aula na universidade. Foi a minha última aula ao fim de 16 anos. É muito tempo. O mais curioso é que o que me mete medo não é o que vem pela frente. É perder o que deixei para trás.

quinta-feira, maio 25, 2006

Noites Longas

I Know

You've got such a pretty smile
It's a shame the things you hide behind it
Let 'em go
Give it up for a while
Let 'em free and we will both go find it

I know theres nowhere you can hide it
I know the feeling of alone
I know that you do not feel invited
But, come back, come back in from the cold

Tell me how you really feel
Tell me what is on the inside of you
All the somethings you conceal
Only keep away the ones who love you

Step away then from the edge
Your best friend is life is not your mirror
Back away, come away
Back away, come away
Back away, come away
Back away, come away
Back away, come away
Back away, come away
I am here and I will be forever

I know theres nowhere you can hide it
I know the feeling of alone
Trust me and dont keep that on the inside
Soon you'll be locked out on your own

You're not alone
You're not alone
And don't say you've never been told
I'll be with you 'til we grow old
'til I'm in the ground and I'm cold
I'm not sitting up here on some throne
Like a dog you can always come home
Dig up a bone
Look around

Jude

quarta-feira, maio 24, 2006

Vida dura

Em África, todas as manhãs, uma gazela acorda.
Sabe que tem de correr mais depressa que o leão, ser mais veloz, ou será morta.
Todas as manhãs, um leão acorda.
Sabe que tem de correr mais depressa que a gazela mais lenta, ou morrerá de fome.
Não interessa se és um leão ou uma gazela.
Quando o sol se levantar será bom que corras.

Provérbio africano

segunda-feira, maio 22, 2006

Pensamento do dia

Quem eu amo n me ama e quem me ama n me abana.

domingo, maio 21, 2006

Caridade

"A Faculdade de Ciências Humanas oferece um espelho de corpo inteiro à Associação Nacional dos Leprosos.
A Faculdade de Economia oferece 500 kilos de carne à Liga Portuguesa das Bulimicas.
A Faculdade de Teologia oferece 600 pilulas abortivas à Fundação Ajuda de Berço."

quinta-feira, maio 18, 2006

O Jogo

Na mesma mesa em que tantas vezes vira a sua mãe preparar o jantar, jaziam agora inertes as cartas espalhadas de um baralho. Acabado que estava o seu jogo de solitário, Vasco Vicente preparava-se para tomar a decisão da sua vida.

Nascido em berço de ouro, Vasco cedo se habituara a olhar o mundo à sua volta com uma certa indiferença. Nunca precisara de despender muitas energias para conseguir aquilo que queria. Esta lógica aplicara-se a tudo na sua vida. Concluíra o seu curso sem grande dificuldade (ou grande mérito, visto que todos os seus professores conheciam o seu pai, o maior mecenas daquela universidade). Foi com naturalidade que se viu à frente de uma das empresas da família, uma fábrica de enlatados que qualquer um seria capaz de gerir. Sem surpresa, descobriu que o funcionamento da fábrica era pouco mais interessante que a rotina da sua vida. Era quase tão fácil ganhar dinheiro ali como adormecer nas aborrecidas reuniões com o sindicato.

Também Teresa tinha vindo de uma família com posses. Vira Vasco pela primeira vez numa festa de gala, passeando a sua indiferença pelo meio dos vícios daquela elite lisboeta. Agia como se já lhes conhecesse os truques e manhas. Longe de o surpreenderem, causavam-lhe enfado. O desencanto do olhar de Vasco encantou Teresa.
- Festa divertida, não acha?
Ele fingiu olhar para a taça de ponche com um ar interessado.
- Está bom, o ponche?
Viu que a manobra não a ia afastar.
- Não sei, ainda não o provei – suspirou resignado.
Olhou-a finalmente nos olhos. Estranhamente, não se sentiu repelido por ela. Não se parecia com aqueles predadores. Passou o resto da noite com Teresa. E o resto da semana. E o conforto que experimentavam na companhia um do outro, Teresa encantada com Vasco, Vasco desencantado com o resto do mundo, levou-os ao altar.

Vasco descobriu no casamento uma nova rotina. Rapidamente se encontraram a partilhar a cama, de costas voltadas um para o outro, a mesa, com os olhares fixos nos pratos, a vida, separados. Sebastião chegou nove meses depois de Filomena, e Teresa, que acreditava que as crianças poderiam trazer novo alento àquela união, facilmente percebeu que nem assim a monotonia se ia alterar.

À noite, quando se despedia da fábrica, Vasco demorava algum tempo antes de chegar a casa. Não tinha pressa para voltar para aquelas noites cada vez mais aborrecidas, sempre iguais, ora com os filhos a chorar, ora com a mulher que, em boa verdade, nunca tinha amado. Experimentou outras mulheres, refugiou-se durante uns tempos no álcool, tentou até encontrar prazer nas drogas, mas a apatia que sentia não desaparecia. Acabada a noite, regressado a casa, limitava-se a um seco “Boa noite” a que Teresa já não respondia.

Até àquele dia em que Xavier lhe mudou a vida. Tinham jantado bem e bebido ainda melhor. Quando o amigo lhe sugeriu uma ida ao casino, Vasco ponderou a sua opção, voltar para casa, e aceitou sem hesitações.Xavier arrastou Vasco para um dos casinos mais conhecidos e afamados da capital. Naquela noite, o casino estava a abarrotar e o ruído produzido pelas slot machines era quase insuportável. Por entre o alarido, Vasco e Xavier iniciaram uma partida de póquer, o jogo predilecto do seu amigo, que há muito frequentava estabelecimentos de diversão nocturna. Com um ar de satisfação estampado no rosto, Xavier recebia as cartas, certo de que a sorte lhe iria sorrir. Afinal de contas, ele era um velho e experiente jogador, como Vasco não tardou em descobrir. Pela noite fora, as vitórias sucessivas do seu amigo irritavam Vasco, fazendo-o querer jogar cada vez mais. Tudo o que queria era ganhar uma partida. Pela primeira vez na vida via o seu desejo negado.
-Oh Vasco, não vale a pena ficares nervoso, a sorte de principiante há de chegar! - Dizia o amigo com uma ironia que o deixava ainda mais furioso
Era quase de madrugada quando Vasco finalmente levou a melhor ao seu amigo. Um contentamento súbito encheu-lhe o peito. Apercebeu-se de que a noite passara depressa, os problemas ficaram esquecidos. Aquela fuga à rotina deixou-o saciado.

Passou a ir ao casino todas as noites, às vezes mesmo sem Xavier que, com o tempo, começara a perder dinheiro no jogo e a acumular dívidas. Vasco gostava muito de jogar, mas não era lá grande jogador. Apesar disso apostava alto. Pouco a pouco, Vasco largou tudo. Perdia mais vezes que ganhava, o que lhe custou primeiro todo o seu dinheiro e depois a fortuna que o pai lhe deixara. A fábrica, que sempre fora tão lucrativa, com a ausência de uma mão no leme, começara também a andar à deriva. E não precisou de muito tempo para começar a dar prejuízo.

Enquanto os negócios de Vasco naufragavam, a sua vida pessoal ruía. Deixou de se dar com os poucos amigos que ainda tinha. Eles, gradualmente, deixaram de notar as suas ausências. Sem grandes remorsos, deixou de frequentar as festas, jantares e afins que antes tanto o aborreciam. Com o tempo que passava em mesas de jogo, Vasco parecia ter mudado de casa. Teresa já só o via quando ele ia trocar de roupa, comer qualquer coisa, afogar-se na cama por umas horas. Passava tanto tempo fora que não via os seus filhos crescer. E Teresa, que já passara por tanto, atingiu o ponto de saturação… Deixou-o, foi viver com a mãe. E no divórcio levou-lhe a casa e metade do pouco que restava a Vasco.

Ficou desesperado. Precisava de dinheiro para sustentar aquele vício que o consumia. Não conseguia viver afastado daquela mesa verde. Foi aí que se lembrou de apostar a última coisa que lhe restava. A herdade dos pais, na terra dos avós. Era uma propriedade esquecida, perdida entre montes, num canto esquecido da Beira Interior. Foi com um tremor de nervosismo no peito que entrou naquela casa. A sua última hipótese de ganhar. O sítio trazia-lhe algumas recordações de infância, mas não as suficientes para o fazerem desistir de a apostar. Conseguiu arranjar um jogo em Coimbra, através de um companheiro de vício, e preparou-se para a jogada da sua vida.

Nessa noite, demorou a arranjar-se. Ele, que já nem perdia tempo em frente ao espelho, barbeou-se cuidadosamente, vestiu-se com esmero, e até ousou perfumar-se. É que esta noite era muito especial. Dirigiu-se ao apartamento em que tinham combinado. Era um jogo ilegal, mas tanto lhe fazia. Trocou o título de propriedade pelas fichas combinadas e dirigiu-se à mesa Os seus parceiros de jogo, suspeitos do costume, com quem já se tinha cruzado inúmeras vezes, nem o reconheceram, acostumados que estavam ao seu ar desleixado.

Começou cuidadosamente, apostando pequenas quantidades de fichas. Aos poucos, o seu pecúlio ia crescendo. Observou demoradamente os companheiros de jogo, enquanto recebia as cartas. Não desmanchou a expressão, nem quando viu a mão inacreditável que lhe tinha sido dada. Entre os seus dedos alinhavam-se cinco cartas de copas. Um Rei, uma Dama, um Valete, um Dez e um Nove. Era quase impossível perder ali. Decidiu apostar a casa perante a estupefacção dos parceiros. Estes, apesar de admirados, decidiram que ele estava a fazer bluff. Já tinham visto Vasco jogar demasiadas vezes para acreditar que ele podia ganhar. Ainda o tentaram dissuadir, mas Vasco mostrou-se irredutível. Igualando a aposta, obrigaram Vasco a abrir o jogo. Sentia-se dominado pela excitação. A mera hipótese de poder perder tudo numa jogada tornava as coisas mais emocionantes. Mas se vencesse agora, a jogada da sua vida estava ganha. Quando todas as cartas foram postas em cima da mesa, Vasco não queria acreditar. Tinha ganho o jogo. O seu coração batia a um ritmo que nunca tinha experimentado. Estava excitado, a adrenalina corria-lhe pelo sangue de uma forma galopante. “Isto é que é felicidade…”. E, subitamente, o seu coração parou. Caiu em cima da mesa, com os olhos pousados sobre as fichas. Morreu, mas nos seus lábios dançava um sorriso. Vasco só conheceu a felicidade quando correu o último e maior risco da sua vida.

Vamos agradecer ao Paulo e ao Jorge, o meu grupo de E. Criativa, que junto comigo criaram esta "estorinha". Obrigado

domingo, maio 14, 2006

Pensamento do dia

Há quem tenha o mundo todo na mão. Há quem tenha só um bocado, mas sem o saber usar.

terça-feira, maio 09, 2006

Sacrificios

-Eras capaz de morrer por mim?

Daniel olhou para Luísa com estranheza. Não estava habituado a ouvir aquele tipo de perguntas vindas da boca dela. Normalmente queria saber se ele achava que ela estava a ficar gorda, ou se se tinha lembrado de trancar a porta. Era esse o tipo de relação que tinham, sem grandes dramas. Virou-se para ela e olhou-a nos olhos. Ela estava a falar a sério.

-Mas que raio de pergunta é essa, Luísa?

Ela desviou o olhar, embaraçada, e murmurou:

-Não é nada…

Daniel virou-se de volta para o seu lado da cama, de sobrolho franzido.

-Tive a ler um livro… Dizia que quando tás disposto a morrer por outra pessoa, é a prova de que a amas mesmo...

<> Um silêncio de pedra abateu-se sobre os dois. Daniel não costumava pensar naquelas coisas do amor. Gostava e pronto, não havia muito mais a dizer.
Demorou a adormecer, arrependido por não ter dado uma resposta na altura certa.



Acordou tarde no dia seguinte, ainda a pensar naquela conversa. Tacteou a cama à procura de Luísa, mas só encontrou um espaço vazio. Já devia ter saído para o trabalho, o que não era de admirar, visto que o despertador já devia estar a tocar há umas boas duas horas. Levantou-se, preguiçoso, e arrastou-se para a casa de banho. Colado no espelho estava um recado de Luísa. “Volto tarde, não esperes por mim pra jantar. Beijos.” Devia estar amuada por causa da cena da noite anterior. Daniel resignou-se à perspectiva de um par de dias de silêncios incómodos, visto que afinal de contas, a culpa era dele. Tomou banho, vestiu-se, e saiu para trabalhar, sempre com aquela pergunta na cabeça.


Luísa passou o dia a remoer a conversa da noite anterior. Nunca devia ter feito aquela pergunta. Conhecia demasiado bem Daniel para poder esperar uma resposta convincente. Na verdade, não tinha dúvidas de que ele a amava. Era uma certeza que vinha sempre confortá-la quando ele a olhava nos olhos. Nas conversas do dia-a-dia e até mesmo nos silêncios, ela percebia que o carinho que ele não punha em palavras estava sempre presente. Mesmo assim, aquela pergunta saíra-lhe da boca, sem que ela o pudesse evitar. Pedir-lhe-ia desculpa quando chegasse a casa. Não valia a pena usar o silêncio para passar por cima daquela conversa.


Ocorrera-lhe enquanto estava sentado na paragem do autocarro – ia esperar Luísa com um jantar à luz das velas. Não estava habituado a preparar aquele tipo de surpresas românticas, mas sabia bem que Luísa as merecia. Passou pelo supermercado, trouxe tudo aquilo que lhe pareceu necessário para que a noite corresse na perfeição, comprou flores, alugou até um daqueles filmes românticos de que ela tanto gostava (lamechices, como ele próprio gostava de lhes chamar). Tratou de tudo com um cuidado de que nem se sabia possuidor. Queria que a noite fosse perfeita. Quando acabou os preparativos, tinha no forno uma pasta italiana com um ar apetitoso. Na mesa ardiam duas velas que emprestavam à sala toda uma luminosidade que convidava a fazer as pazes, e na aparelhagem estava já preparado para tocar o CD preferido de Luísa. Satisfeito com o resultado do seu esforço, Daniel sentou-se no sofá, adivinhando a cara da sua mulher quando se deparasse com a surpresa.


Saiu tarde do escritório, e ainda conseguiu demorar bastante tempo a chegar a casa, graças à chuvada que se abateu sobre si no momento em que pôs o pé na rua. Quando o autocarro finalmente chegou à paragem em frente a sua casa, Luísa ia tão cansada que nem reparou no homem que desceu as escadas do autocarro atrás de si. As passadas que seguiam as suas passaram-lhe despercebidas, e nem sequer notou, quando começou a subir as escadas, que tinha deixado a porta do prédio por fechar. Só ao abrir a porta de casa é que finalmente percebeu que tinha alguém atrás de si. Não se virou, não lhe pareceu muito sensato, visto que tinha um objecto de metal encostado à nuca. Uma pistola. Um sussurro roubou-lhe todo o sangue da cara.

-Vamos, não pares agora, amor. Vamos lá a entrar pra dentro de casa.

A tremer, foi pondo um pé à frente do outro, quase tropeçando de medo. O homem que a seguia, com a arma ainda encostada a si, ia-se insinuando, ora encostando em si os quadris, ora passando-lhe com a mão pelo corpo. Os arrepios que ia sentindo enquanto percorreu o corredor até à sala assemelhavam-se vivamente a pura dor física.

Quando cruzou a porta da sala, o que viu deixou-a quase tão espantada como ao homem que tinha atrás de si. A mesa estava posta, com duas velas acesas no centro, a ladear um pequeno vaso com uma rosa. Ao fundo ouviu a sua música preferida.


Ao ouvir a chave na porta, Daniel correu para a cozinha. Pelo caminho ligou a aparelhagem e tirou o avental que tinha estado a usar para disfarçar a sua inabilidade como chefe de cozinha. Quando voltou com a travessa na mão encontrou Luísa à entrada da sala, com um tipo atrás dela a apontar-lhe uma pistola. Não pareceram reparar nele a aproximar-se por trás no corredor. Quando chegou suficientemente perto, Daniel levantou a travessa e atirou-a com toda a força à cabeça do filho da puta que estava a ameaçar Luísa. O cair dos estilhaços anunciou a queda do homem pelo chão, com um enorme corte na cabeça, coberto por um misto de massa e sangue.

Daniel, ainda a tentar perceber o que se tinha passado, passou por cima dele, e abraçou Luísa. Ficaram assim, agarrados, durante um instante que se desenrolou pelo silêncio.

“Clic”

O homem levantava-se à velocidade que as tonturas provocadas pela travessa lhe permitiam, mantendo no entanto a arma apontada a Daniel.

- Senta-te naquela cadeira. – Ordenou calmamente.

Reticente, com o olhar dividido entre o cano da arma e os olhos de Luísa, Daniel foi recuando até se sentar na cadeira, no meio da sala.


Luísa seguiu as instruções do homem, e atou Daniel à cadeira. Era difícil argumentar contra uma arma. Quando terminou, agachada ao lado de Daniel, olhou a medo para o tipo, que por aquela altura a observava com um sorriso maldoso a pairar nos lábios.

-Despe-te – cuspiu ele entre dentes.

Ficou petrificada. A resposta veio do outro lado.

-Nem penses filho da puta! Luísa, tá quieta, não faças nada! Ele não te vai fazer mal!

“Bang”. O tiro acertou no joelho de Daniel. Preso na cadeira, contorceu-se, soltando um gemido de dor.

-Não, Luísa, não te vou fazer mal nenhum, antes pelo contrário. Mas se não fizeres o que eu te digo, faço-lhe mal é a ele. – Disse com um sorriso, mirando Daniel com a arma.

Luísa olhou para Daniel. As lágrimas rolavam-lhe pela cara abaixo. Nunca o tinha visto chorar.

-Não faças nada Luísa! Deixa-o matar-me, por favor! Não o deixes tocar-te!

Lentamente, Luísa pôs-se em pé. Começou a desabotoar a camisa.


Quando o homem saiu, deixou atrás de si um rasto de dor. Abraçada a Daniel, Luísa chorou também. Naquela noite, Luísa morreu por dentro. Por Daniel.

domingo, maio 07, 2006

Writer's block

Duas semanas de carreira como escritor e já sequei? Que merda, hã?

segunda-feira, maio 01, 2006

Dias destes...

Forever Young

let's dance in style, lets dance for a while
heaven can wait we're only watching the skies
hoping for the best but expecting the worst
are you going to drop the bomb or not?
let us die young or let us live forever
we don't have the power but we never say never
sitting in a sandpit, life is a short trip
the music's for the sad men
can you imagine when this race is won
turn our golden faces into the sun
praising our leaders we're getting in tune
the music's played by the madmen
forever young, i want to be forever young
do you really want to live forever, forever and ever
some are like water, some are like the heat
some are a melody and some are the beat
sooner or later they all will be gone
why don't they stay young
it's so hard to get old without a cause
i don't want to perish like a fading horse
youth is like diamonds in the sun
and dimonds are forever
so many adventures couldn't happen today
so many songs we forgot to play
so many dreams are swinging out of the blue
we let them come true

Alphaville

quinta-feira, abril 27, 2006

Prémio "All the other kids are doing it!"

1º - Pai, dás.me dinheiro pra comprar cocaina?

2º - Vá lá amor, vamos fazer amor no rabinho...

3º - Mãããe, deixa-me ir ao Lux!

terça-feira, abril 25, 2006

Do you think being miserable will ever make you happy? It won't. It will olnly make you miserable.

- Achas mesmo que isso é maneira de lidar com a situação?
- Acho. Afinal de contas é só uma questão de perspectiva. Tu achas que ele é um cabrão. Eu acho que ele é um bom pai e um bom marido. Pra mim isso chega.
Nem mesmo ela acreditava nas próprias palavras. Não existia nenhuma questão de perspectiva. Margarida sabia que estava errada, que o seu marido não a amava, que se mantinha no casamento pela comida, cama e roupa lavada. E ainda assim, não conseguia dizer isto a mais ninguém.
- Eu sei que tens medo de ficar sozinha, Margarida, mas isto não é maneira de viver. Por amor de Deus, ele tentou saltar-me pra cima. O tipo não tem escrúpulos! Sabes lá com quantas mulheres ele anda enrolado enquanto lhe fazes o jantar?
Patrícia tinha razão. Se era capaz de se fazer assim à sua melhor amiga, era mais que provável que andasse por aí a pular de cama em cama. Se calhar se tivesse sido Patrícia a casar com ele, nunca teria de passar por aquela situação. Mas Patrícia era bonita, era forte, não tinha tido dois filhos, tinha uma carreira de sucesso, enfim, teria tudo para o poder pôr na rua sem grandes problemas. Ela não. Dependia dele. Sempre dependera, desde o início.
- E pra onde é que eu vou depois? O que é que eu faço? Sabes perfeitamente que ele não vai querer ficar com as crianças. Patrícia, eu sou uma secretária, nunca vou passar disso. Adoro os meus filhos, mas sei que é impossível tomar conta deles sozinha. Não tenho dinheiro pra isso. Nem agora. Nem nunca.
A conversa acabava sempre aqui, o argumento do dinheiro punha sempre Patrícia em “cheque”.
- Vai pra tribunal, se for preciso, fica-lhe com o dinheiro. Eu pago o advogado, se for preciso. Sirvo de testemunha. Se for preciso contratamos um detective pra o seguir. Não há juiz neste país que não te dê razão. Só tens de dar o primeiro passo. Não consigo mais ver-te a sofrer assim.
Prometeu que ia pensar nisso. Patrícia acabou por ir para casa, pouco depois. Eram três da manhã, e Henrique ainda não tinha chegado.
Foi para a cozinha. Ainda tinha coisas para fazer. Ao tirar a roupa da máquina de lavar reparou no colarinho da camisa dele. Marcas de batom. Certamente não eram suas. Deixara de se maquilhar quando Sebastião nascera. Levou-a para a bancada da cozinha. As suas lágrimas não pareciam ajudar o batom a desaparecer. Enquanto esfregava, pensava em Henrique. Naqueles primeiros tempos de casado, em que ele chegava todos os dias a casa, trazendo tantas vezes flores. Naquelas noites em que sentia que ele a amava.
Quanto tempo demoraria Henrique a aperceber-se de que ainda a amava?

domingo, abril 23, 2006

Pensamento do dia

Viva a FashionTV

Amor de mãe

Desde pequeno, Mário estava habituado a não esperar muito da vida. Em retrospectiva, parecia-lhe natural. Nunca fora alto ou forte, bonito ou charmoso, rico ou bem-sucedido. Nunca se distinguira por nada em especial. Era apenas mais um estranho na multidão. Mais do que adaptar-se à sua sorte, Mário vivia de acordo com ela. Não tinha expectativas da vida, só queria seguir o seu caminho sem ser incomodado. Nunca pedira nada a Deus.
Tinha um trabalho normal, numa qualquer cave de um qualquer edifício de uma qualquer repartição pública. Ganhava pouco, mas gastava ainda menos, e por isso acumulava todos os meses mais um tanto, num pé-de-meia para o qual ainda não tinha um destino. Vivia sozinho, no pequeno apartamento em que nascera e em que ainda descansava a mobília de origem. Não tinha fotografias nem molduras, em parte por não ter amigos, em parte por já não ter família. As suas relações sociais eram escassas e sem significado, talvez pelo carácter marcadamente desinteressante da sua pessoa. Filho único de filhos únicos, nem mesmo quando os seus pais morreram, atropelados por um autocarro da Carris, Mário ousou amaldiçoar o seu azar. Aparentemente, Deus tinha-se esquecido dele, desconhecia a sua existência.

Foi por isso que, no dia em que Raquel lhe bateu à porta, Mário ficou ainda mais surpreendido. Tinha-o arrancado ao seu ritual das tardes de Sábado, ver televisão e comer chocolate, para lhe atirar uma bomba para o colo. No sentido figurado, porque o pequeno ser que segurava não tinha grandes semelhanças com um engenho explosivo.

- Chama-se Bernardo, e é teu filho. – Descarregou Raquel ao passar-lhe a criança para as mãos.

Mário deixou-se ficar, atordoado. Aquele nível de surpresa teria feito muitos deixar o miúdo cair no chão. Nele, teve o efeito contrário. Despertou nele um estranho instinto de protecção do qual nem o próprio suspeitava ser possuidor.

- Lembras-te daquela noite em Aveiro? Pois é, nove meses depois nasceu o Bernardo…

Mário lembrava-se. Tinha ido a Aveiro para recolher uns pertences do pai, que uma prima afastada tinha guardado. Passara lá a noite, o temporal não aconselhava à condução. Foi no hotel, mais exactamente no bar do hotel, que viu Raquel, deslumbrante, num vestido preto bastante revelador. Eram onze e meia da noite, e Mário soube-o porque olhou para o relógio, só para ver se o tempo tinha parado. Como sempre, não esperava que ela lhe retribuísse o olhar. Enganou-se. Raquel não só o retribuiu, como também se levantou, e parecia estar a encaminhar-se para ele. Estático, admirado, balbuciou um “sim” quando ela lhe perguntou se podia juntar-se a ele. Conversaram durante algum tempo, Mário com o seu ar surpreendido, Raquel num tom ao mesmo tempo distraído e convidativo. Chegou para encantar Mário, que respondeu de novo um inseguro “sim” quando ela lhe perguntou se tinha um quarto e se queria subir com ela. Subiram pois, desajeitadamente enrolados em beijos. Entraram no quarto, rolaram na cama, despiram-se, Mário como se lutasse com um colete-de-forças, Raquel com a segurança de quem sabia o que estava a fazer (e o que tinha vestido). Fizeram amor – ou pelo menos fora isso que parecera a Mário – durante uma marca recorde de sete minutos. Deitaram-se, cada um para seu lado, ofegantes. Em resposta ao “gostaste?” de Mário, Raquel debitou um “são quinze contos”. Levantou-se e vestiu-se, enquanto um desesperado Mário procurava o dinheiro na carteira, maldizendo o seu estúpido elevar de expectativas.

Sim, Mário lembrava-se perfeitamente dessa noite.

- Pois é, ele é teu filho, e supus que o quisesses conhecer – explicou Raquel, de olhos postos na criança – para além disso estou com uns problemas. Quero que tomes conta dele durante uns tempos.

Mário pensou naquilo tudo, ainda meio confuso. Tinha um filho. Não estranhou o ano e tal que ela levara a contar-lhe. Nem fez bem as contas. Que é que interessava se as probabilidades de ter feito um filho na primeira e última vez que tinha tido relações com outra pessoa era ínfima? Afinal de contas, era pai!

- Mas tens a certeza que queres que eu fique com ele? Que é que se passa contigo, tas doente?

- Tenho uns problemas, preciso de tempo para os resolver. Não me posso dar ao luxo de andar com um puto às costas.

A frieza com que ela disse aquilo deixou Mário em estado de alerta. Não podia deixar o seu filho entregue a uma pessoa daquelas. Faria o que fosse preciso para ficar com ele, para o proteger.

- Tá bem, ele fica comigo.

- E tenho de te pedir outra coisa. Preciso que me emprestes dinheiro. Cinco mil euros.

Mário nem quis saber para quê. O dinheiro não era uma preocupação naquele momento.

- Agora não tenho aqui o dinheiro pra te dar, mas passo-te um cheque. Segunda-feira podes levantá-lo.

Assim que se viu com o pedaço de papel na mão, Raquel virou costas e saiu.

Às nove e meia da manhã de Segunda-feira Mário tinha já cinco mil euros a menos na sua conta. Completa a transacção, a mãe do seu filho esfumou-se, não deixando vestígios. Mário também não foi à sua procura. A sua vida tinha agora um novo centro – girava em torno de Bernardo. Meteu a primeira semana de férias da sua vida e passou-a em exclusivo com ele, a preparar a nova vida a dois. Levou-o a médicos, pensando que, com uma mãe daquelas, a criança podia perfeitamente trazer consigo algumas surpresas. Incrivelmente, Bernardo estava de perfeita saúde. Saudável, risonho, um miúdo lindíssimo. Deus parecia finalmente ter reparado em Mário. Com um olhar generoso, para o compensar.

Deixava Bernardo na creche às nove da manhã, e demorava sempre mais de quinze minutos a despedir-se. Corria para o emprego, chegando sistematicamente atrasado. As horas, passava-as a pensar no filho, ao mesmo tempo que organizava os ficheiros naquele buraco esquecido. Quando batiam as quatro da tarde, hora de saída, já Mário ia a meio da rua, correndo para ir buscar Bernardo. As empregadas da creche não se cansavam de assistir àqueles reencontros entre os dois. Nunca tinham visto um pai tão extremoso, tão carinhoso, sempre ansioso por ver o rebento. E Bernardo, ele também, assim que aprendeu a andar, começou a correr para o pai. Mário passava horas a falar com Bernardo. Quando Bernardo disse a sua primeira palavra, Mário chorou de alegria. Naquele momento, como em tantos outros desde que o seu filho entrara na sua vida, apercebeu-se de que nunca se sentira tão feliz.

E de repente, ao fim de um ano e meio, o telefonema.

- Olá Mário.

Era Raquel. Depois de tanto tempo, nunca esperara voltar a ouvir aquela voz. Respondeu com a agressividade de um pai que sente o perigo perto do seu filho.

- Que é que queres?

- Calma, Mário, não quero nada. Só preciso de ver o meu filho, tenho saudades dele…

O Bernardo deixou de ser teu filho no momento em que o largaste comigo.

Desligou-lhe o telefone na cara. Sentou-se numa cadeira, ligeiramente agoniado. O medo de perder Bernardo era irracional, maior que qualquer outro que alguma vez sentira.

O telefone tocou de novo. Deixou-o tocar, aproveitando para recuperar o fôlego. Pegou no telefone, com a mão suada, nervoso e atendeu.

- Mário, por favor, preciso de o ver… Ele é meu filho…

O tom de voz dela contrastava com o daquele dia, um ano e meio antes. Quente e frio, na mesma pessoa. Ponderou a situação, durante uns segundos.

- Mário, tas aí? Responde! – Raquel veio arrancá-lo aos seus pensamentos.

- Sim, tá bem. Como é que queres fazer?

- Podemo-nos encontrar onde quiseres…

- É-me indiferente.

- Naquele jardim que há aí ao pé de tua casa… Amanhã à tarde? Talvez às três? Como é Domingo…

- Tá bem. Às três, então. Adeus.

- Mário… Obrigado.

Desligou. Tentou afastar da cabeça a ideia de que ela voltara para ficar com o seu filho. Não, não podia ser. Afinal de contas, ela era… Não, ela não podia querer ficar com Bernardo. Acalmou-se. Foi deitar o filho, que tinha estado entretido em frente à televisão e agora bocejava ensonado. Leu-lhe uma história e ficou a observá-lo a adormecer. Adormeceu também, sentado no chão ao lado da cama de Bernardo, com a cabeça deitada junto ao peito do seu filho, embalado pela sua respiração suave.

Enquanto andava de mão dada com Bernardo a caminho do encontro, no dia seguinte, os seus medos estavam já controlados. Acordara calmo, confiante de que ainda teria muito tempo pela frente junto do seu filho, suficiente para o ver crescer e tornar-se num homem.

Avistou Raquel, ao longe, ao pé do lago. Estava acompanhada. Ele era grande. Procurou uma palavra para o descrever. Não, ternurento não funcionava. Violento, talvez. Segurou a mão de Bernardo com mais força, assegurando-se de que ele ainda ali estava.

- Olá Mário – cumprimentou-o Raquel quando se aproximou – Este é o meu marido, Sérgio.

“Marido?!”, pensou Mário, tentando manter um ar descontraído. Sérgio estendeu-lhe a mão para o cumprimentar, embora não com a cara de quem queria fazer novos amigos. Mário apertou-a, ou melhor, foi esmagado por ela.

- Olá Bernardo! – Disse Raquel com uma curta dose de alegria, quando se baixou de braços abertos para o receber. Bernardo não se mexeu. Olhou para o pai, perguntando com o olhar se era seguro. Mário assentiu, e a criança aproximou-se. Raquel abraçou-o. Ele manteve-se imóvel, com os bracinhos estendidos ao longo do corpo.

Raquel pôs-se novamente de pé, e Bernardo aproveitou para se ir agarrar às pernas do pai, assustado. Com um certo tom de arrependimento nas suas palavras, Raquel disse:

- Mário, não te queria dizer pelo telefone… Mas eu quero levar o Bernardo comigo.

Pânico. Não sabia o que fazer. O instinto fê-lo puxar Bernardo para trás de si. A criança, sem perceber o que se estava a passar, agarrou-se ainda mais às suas pernas, num gemido silencioso.

Quando acordou não se conseguia lembrar de nada. Doía-lhe tudo, e rapidamente descobriu porquê. A boca doía-lhe porque lhe faltavam três dentes. Doía-lhe o braço porque devia estar partido, pelo menos foi o que depreendeu pela nova e estranha posição em que ele se encontrava. Tudo o resto, estava pura e simplesmente inchado e, portanto, doía. Ah, já se lembrava, tinha apanhado uma carga de porrada. Bernardo, esse, estava sentado no banco de jardim ao seu lado, a chorar. Quando viu o pai a acordar, correu para ele, provocando-lhe uma enorme dor ao atirar-se-lhe para cima. Apesar de tudo, Mário estava eufórico. Tinha conseguido ficar com Bernardo. Tinha enfrentado a besta, o “marido” de Raquel, e embora mal lhe tivesse conseguido tocar (tirando o contacto entre o punho de Sérgio e a sua boca, o seu braço, as suas costelas, etc.), o sacrifício fizera Raquel compadecer-se. “Se está disposto a levar uma sova destas pra ficar com o puto, não lho posso levar…”. Devia ter sido mais ou menos isto que lhe passara pela cabeça, porque ao fim de algum tempo, demasiado, pelas contas de Mário, ela pediu ao “marido” para parar. Olhou ligeiramente apreensiva para os ferimentos de Mário, olhou para o filho, lavado em lágrimas, e pensou que já tinha causado demasiado sofrimento ali. Virou as costas e foi-se embora, num passo largo, seguida pelo seu “doce acompanhante”.

Mário viveu feliz. Talvez não para sempre, mas durante bastante tempo. Bernardo também. No fim, todos lutamos por aquilo que precisamos. Eles precisavam um do outro.

sábado, abril 22, 2006

Epifânia pós-Lux

A Olga é um bicho estranho...

The house rules

"Arrive as a couple, leave as couple. No videos, no photos. And the kids must never know."

quarta-feira, abril 19, 2006

O gordinho - parte 1

Até aquele dia, a vida de Alberto fora igual a tantas outras, normal. Na verdade, abaixo normal. Com menos cabelo que normal, de estatura inferior à do comum dos homens, a única coisa que Carlos tinha em grande quantidade era área corporal. A sua forma (redondinho) exercia um certo peso na sua vida sentimental – arrastava-a para baixo. Alberto até era queridinho, educadinho, um bom rapazinho. E já nem vivia com a mãe! Aproveitara o seu último aumento no banco – onde até tinha considerável sucesso, graças ao seu jeitinho para as contas, aprimorado durante os anos em que gerira o orçamento familiar – para se mudar para um pequeno mas confortável apartamento num bairrito simpático no centro da cidade. Decorara o espaço com um surpreendente bom gosto, considerando que nunca se destacara pela elegância ou primor estético.
Aos trinta anos ainda não tinha tido uma única relação séria. Alguns dos seus colegas desconfiavam da sua sexualidade, outros havia que pensavam que era virgem. Todos eles pensavam que ele ainda vivia com a mãe. Claro, Alberto já tinha estado com mulheres. Perdera a virgindade aos vinte e três anos, de uma forma anormalmente desajeitada. Apesar de ter consciência de que a maior parte das primeiras vezes não corria bem e quase nunca “correspondia às expectativas” (Alberto lia muitas revistas, e, na teoria, até sabia mais ou menos como é que as mulheres funcionavam), nunca se preparara para aquele desastre. Pelos vistos, Graça também não. Naquela noite, ao fim de dois meses de namoro, depois de toda a ginástica no banco detrás do seu Dois Cavalos, ela parecia imensamente triste. Ia jurar que, ao despedir-se da porta da sua casa, Graça deixara cair uma lágrima. Ficou destroçado. Nunca mais a viu. Não tinham sido feitos um para o outro. Alberto parecia mesmo não ter sido feito para ninguém. Era como uma peça de puzzle que não encaixava. De certa forma, Carlos não pertencia a puzzle nenhum. Não pertencia sequer ao universo dos jogos de tabuleiro… Era diferente dos outros homens, e talvez por isso ainda estivesse sozinho.
Era tímido, mas atencioso. Era simpático, mas ainda corava quando uma rapariga olhava para ele. Gostava de crianças e as crianças gostavam dele. Era um bom filho, fora um bom neto, e só não tinha sido um óptimo irmão porque o pai tinha fugido com uma “bailarina exótica” pouco tempo depois de Alberto ter dado os primeiros passos, deixando a mulher desamparada. Talvez este facto explicasse a admiração que Alberto tinha pelas mulheres. Explicava certamente a sua esmerada educação, adquirida pela convivência diária quase exclusiva com a Ester, sua mãe, e Dona Laura, a sua avó. Com elas aprendera a ser um homenzinho. Sempre fora uma criança dócil. Tornara-se um adolescente gentil. Crescera para ser um bom homem. Preocupava-se. Preocupava-se com o mundo, com as pessoas à sua volta, com todos aqueles com quem se cruzava. Com a velhota que vivia no andar de baixo, com o Sr. Horácio da farmácia, com aquela rapariga com quem chocara no passeio, com o porteiro do escritório e até mesmo com o cliente do outro lado do telefone. Era uma pessoa genuinamente boa. Não era um génio, mas sabia manter uma conversa. Frequentava cursos de cozinha e aprendera Italiano. Experimentara até a pintura durante algum tempo – o suficiente para se relembrar do porquê das suas notas a desenho. Todas as semanas comprava um novo produto milagroso para fazer crescer cabelo (aprendera com o exemplo do seu avô que um capachinho não era uma opção válida) e começara a frequentar um ginásio, embora os resultados tardassem a aparecer. No entanto continuava gordinho. E careca. E na balança do sexo oposto, a sua aparência física pesava uma tonelada, ao passo que as suas inegáveis qualidades como pessoa não pareciam pesar mais que uns quantos gramas.
Por isso, estava habituado a receber aquele sinal, o que mostra que, dê por onde der, uma rapariga não está interessada num rapaz. Alberto estava habituado a ver, estampado na cara das raparigas, aquele sorriso amarelo que todas elas conheciam e pareciam ter guardado para ele. Mostravam-no quando lhes dava passagem no elevador. Mostravam-no quando se apresentava num qualquer bar. Mostravam-no até quando o atendiam numa loja. Era um sorriso que nem chegava a ser sorriso, como se fossem sorrir mas, de repente, notassem que Alberto tinha qualquer coisa de incomodativo, como se um qualquer mau cheiro as estivesse a incomodar. Alberto percebia até que elas não quisessem viver felizes para sempre com ele. Mas aquele esgar de desagrado, disfarçado de gentileza, era um pontapé no seu ego que o atirava para fossos cada vez mais fundos. De vez em quando pensava em desistir, voltar para casa da mãe, cuidar dela. Ou talvez fugir para outro país, para um sítio onde desconhecesse a língua e pudesse perder-se, talvez a pastar um rebanho. Mas por cada vez que estes pensamentos lhe passavam pela cabeça, outro vinha afastá-los, a ideia de que algures por aí andava uma rapariga que não conhecesse aquele sorriso amarelo-assassino-de-esperanças, que gostasse dele e o deixasse fazê-la feliz. Porque mais que tudo, Alberto queria fazer alguém feliz. Mas as mulheres à sua volta não pareciam ligar à felicidade. Era estranho, mas o desdém, a mentira e a traição pareciam funcionar como um afrodisíaco. Não procuravam felicidade, procuravam uma parede para bater com a cabeça. E não queriam uma parede qualquer. Queriam uma parede bonita, com um belo bronzeado, atlética e com dinheiro para gastar. Não tendo nenhuma destas coisas, Alberto passava invariavelmente as suas noites sozinho, deitado na cama a olhar para o tecto, à espera do dia seguinte que prometia mudar a sua vida.

segunda-feira, abril 17, 2006

"Sometimes you're the windshield, sometimes you're the bug"

domingo, abril 16, 2006

7 e meia da manhã, Domingo de Páscoa, depois de dominar o bicho que é este Template

...E depois apeteceu-me continuar...

-Então que é que se passa?
O taxista não respondeu. Má ideia tentar fazer conversa com aquele homem. O ar de cão sarnento não aconselhava o contacto, mas Ricardo estava tão nervoso que aquilo saiu-lhe sem querer. Bom, restava continuar a brincar com as chaves de casa. Foi uma longa viagem. O silêncio parece estender o tempo, quando estamos ansiosos. Ao entrar no elevador do seu prédio, reviu mentalmente o discurso que tinha preparado. Tinha vindo a adiar aquele momento durante os últimos 3 meses, e embora tivesse tido de ganhar coragem para fazer aquilo, continuava convencido de que aquela era a única solução.
Quando meteu a chave na fechadura, teve uma sensação de “déjà vu”. Já se tinha visto a entrar assim em casa. Já tinha visto aquelas revistas atiradas para cima do sofá. Atravessou o corredor em direcção ao quarto, como que repetindo um movimento programado. De repente, Ana saiu da casa de banho, enrolada na toalha de banho, deixando atrás de si uma nuvem de vapor. Já tinha visto aquela imagem nalgum lado. E não fora só nos seus sonhos.
- Trouxeste-me o maço de tabaco que eu te pedi?
A sensação de “déjà vu” acabava ali. Como sempre, Ana abria a boca e estragava tudo. Seguiu-a até ao quarto, decidido a pôr um ponto final naquilo. Sentou-se na cama, observando-a a vestir-se em frente ao espelho. E quase perdeu a coragem outra vez. Sempre que via aquelas costas nuas, a curva suave daquele pescoço, sentia a sua vontade vergar-se à dela. Mas desta vez controlou-se. Respirou fundo.
- Porque é que tas praí a suspirar?
Era o momento.
- Porque preciso de falar contigo. Tive a pensar em nós, nisto tudo, na vida que levamos... Quero o divórcio, Ana.
Ela virou-se, calmamente, com aquela cara que fazia quando o queria deitar abaixo.
- Tens a certeza que é isso que queres?
Não parecia surpreendida. Não fora assim que imaginara a conversa. Pensava que ela lhe ia perguntar se estava parvo, se tinha andado a beber. Responder-lhe-ia que não, que não a amava, que precisava de espaço, que aquela relação lhe estava a consumir o que lhe restava de dignidade e respeito por si próprio. Na sua cabeça, Ana gritava que a culpa era dele, que era um fraco, que não era sequer um homem. Imaginou-a a chorar, a pedir-lhe para pensar melhor, a perceber finalmente que a sua atitude estava a arruinar o casamento. Nunca pensou que ela se mantivesse tão calma.
- Bom, se tens a certeza, podes fazer as malas e sair.
Enquanto tentava perceber o que se tinha passado ali, Ricardo fez uma pequena mala, deixando para trás a maior parte das roupas, que viria buscar noutro dia, quando Ana não estivesse. Quando passou novamente pela casa de banho, encontrou a porta fechada. Disse adeus, mas a barreira de silêncio que encontrou pela frente convenceu-o de que era melhor seguir caminho. Dormiria em casa da mãe nessa noite.

- Pode ficar com o troco
Desta vez Ricardo agradeceu a Deus pelo taxista silencioso que lhe enviara. Dormira mal. Passara a noite a lutar com os lençois, pensando na conversa que tinha tido com a sua agora quase ex-mulher. Não fazia grande sentido que tudo tivesse sido tão fácil. Ana não era uma mulher fácil, antes pelo contrário. Todas as fases do seu relacionamento com ela tinham sido difíceis. Tinha sido difícil conhecê-la. Ela era fútil, ele não era propriamente candidato a nenhum prémio de beleza. Só aceitou ir tomar café com ele depois de mais de uma dúzia de convites. Demorou dois meses para conseguir beijá-la. De alguma forma, o desafio tornava tudo aquilo ainda mais aliciante. No entanto, quando finalmente começaram a namorar, Ana revelou-se não a pessoa distante que até aí fora, mas uma namorada impossível. Ciumenta, possessiva, exigente, Ana juntava a todas estas inegáveis “qualidades” uma capacidade notável para o envergonhar em locais públicos. Maior parte das vezes até parecia ser sem intenção, mas havia ocasiões em que Ricardo podia jurar que via um sorriso maldoso a nascer na cara dela no mesmo momento em que o via corar.
Tentara em vão escapar à vontade dela de se casar o mais rápido possível.
Ao fim de quatro meses de namoro, estava a vê-la a entrar na igreja de braço dado com o pai, enquanto ele, mesmo sem a certeza de a amar, assistia impotente ao desenrolar dos acontecimentos. E depois aqueles três meses infernais de casamento. Juntamente com a aliança no dedo, Ana tinha ganho toda uma série de estados de humor que Ricardo nunca conhecera, nenhum deles agradável. Se o sexo não era propriamente uma constante antes de se casarem, depois do copo-de-água passara a ser uma ausência confirmada e devidamente lamentada. A cada novo dia, Ana tinha uma justificação diferente para se poder virar para o outro lado e adormecer. Começou na noite de núpcias, com um “hoje não, que o casal do quarto ao lado pode ouvir”, que deixou Ricardo estupefacto, visto que estavam numa pousada que era de facto um castelo, num quarto com paredes de pedra com um metro de espessura, num corredor em que o único quarto, para além do deles, que tinha gente, era o de um casal de 80 anos com o poder auditivo de um par de postes de iluminação. Na verdade, desde essa noite, todos os avanços de Ricardo esbarravam no livro de desculpas da sua mulher, algumas delas repetidas, nenhuma convincente. A par deste gosto pela castidade, Ana ganhara outro – endividar o marido. Nunca conhecera uma mulher tão ávida de compras. Ricardo, que ganhava bastante dinheiro, graças ao seu jeito natural para vender carros, viu-se, no espaço de três meses, rodeado de uma colecção de sapatos suficientemente extensa para calçar todo um convento de Carmelitas Descalças, ao mesmo tempo que a sua conta bancária secava de forma definitiva. E não podia fazer nada, visto que, quando casara, ela o obrigara a assinar o contrato de comunhão total de bens.
E o pior de tudo era quando ela falava. Até se casarem, Ana sempre parecera ser bastante inteligente. A partir do momento em que saíram da igreja, parecia que aqueles bagos de arroz com que levara lhe tinham afectado o cérebro definitivamente. Não mandava uma para a caixa. Os únicos momentos em que parecia ganhar lucidez eram aqueles em que o insultava. Aí lembrava-se logo de umas quantas frases o atingiam directamente onde doía. E no entanto, parecia fazer tenções de passar o resto da vida casada com ele. Aquilo era um inferno, e não dava sinais de vir a ficar suportável nos tempos mais próximos. Por isso planeara toda aquela conversa para o dia anterior, para fugir daquele casamento o mais depressa possível.
Postas as coisas em perspectiva, deixou imediatamente de se questionar sobre a atitude da sua mulher no dia anterior. Estava safo, livrara-se daquilo e, com sorte, perdia só metade do que era seu.
Nessa noite, Ricardo dormiu sossegado, achando que a sua vida mudara para melhor.

Foi com toda a calma do mundo que Ana entrou no avião naquela manhã luminosa de Junho. Era uma mulher rica. Os últimos três meses, passara-os a usar o nome e os cartões de crédito do marido para fazer uma série de investimentos ilícitos e, portanto, bastante lucrativos. Deixara vestígios que inevitavelmente conduziriam a alguém. Mas esse alguém seria Ricardo. Tratara disso pessoalmente, ao telefonar para a Policia Judiciária, dando algumas pistas sobre aquilo que podiam encontrar se procurassem bem na sua casa. Aquele pateta nem sabia o que lhe estava prestes a cair em cima. Quanto a ela, sempre tivera vontade de emigrar para um país de clima quente e praias paradisíacas.
Já sentada no seu lugar, Ana tirou uma fotografia da carteira. Na fotografia, estava abraçada ao seu marido, num cenário da mais pura felicidade. Mas o marido não era Ricardo. O marido da fotografia era Francisco. Francisco tinha morrido um ano antes. O seu carro tinha chocado de frente com um camião, numa curva em que perdera os travões. Era um carro usado, que Francisco tinha comprado pouco tempo antes. O vendedor garantira que estava em óptimo estado. O especialista a que Ana pagara para analisar o carro garantira que os travões estavam danificados, e era impossível o vendedor não saber disso. Quando ouviu isto, Ana jurou pela memória de Francisco que se iria vingar daquele vigarista que lhes vendera o automóvel, da forma mais tortuosa que encontrasse. Passados cinco meses, casou com ele.

7 da manhã, Domingo de Páscoa

Apeteceu-me começar...devagar

Gosto da forma como te mexes. Sempre gostei. Lembro-me quando ainda éramos miúdos, e saltavas à corda. Já aí eu gostava de olhar pra ti. Mas entretanto as coisas mudaram. Antes conheciamo-nos, éramos amigos, partilhávamos os berlindes, andávamos perdidos de bicicleta. Hoje passas por mim e, mesmo sabendo quem eu sou, o meu nome, o dia dos meus anos, o meu gelado favorito e o meu esconderijo de sempre, olhas para a mosca do outro lado da sala. Vou-te dar uma novidade: comprei um mata-moscas! Da próxima vez que passares por mim, vou-te dizer o que não te disse quando tínhamos dez anos. “Olá. Sabes uma coisa? Gosto de ti. Queres namorar comigo?”