Desde pequeno, Mário estava habituado a não esperar muito da vida. Em retrospectiva, parecia-lhe natural. Nunca fora alto ou forte, bonito ou charmoso, rico ou bem-sucedido. Nunca se distinguira por nada em especial. Era apenas mais um estranho na multidão. Mais do que adaptar-se à sua sorte, Mário vivia de acordo com ela. Não tinha expectativas da vida, só queria seguir o seu caminho sem ser incomodado. Nunca pedira nada a Deus.
Tinha um trabalho normal, numa qualquer cave de um qualquer edifício de uma qualquer repartição pública. Ganhava pouco, mas gastava ainda menos, e por isso acumulava todos os meses mais um tanto, num pé-de-meia para o qual ainda não tinha um destino. Vivia sozinho, no pequeno apartamento em que nascera e em que ainda descansava a mobília de origem. Não tinha fotografias nem molduras, em parte por não ter amigos, em parte por já não ter família. As suas relações sociais eram escassas e sem significado, talvez pelo carácter marcadamente desinteressante da sua pessoa. Filho único de filhos únicos, nem mesmo quando os seus pais morreram, atropelados por um autocarro da Carris, Mário ousou amaldiçoar o seu azar. Aparentemente, Deus tinha-se esquecido dele, desconhecia a sua existência.
Foi por isso que, no dia em que Raquel lhe bateu à porta, Mário ficou ainda mais surpreendido. Tinha-o arrancado ao seu ritual das tardes de Sábado, ver televisão e comer chocolate, para lhe atirar uma bomba para o colo. No sentido figurado, porque o pequeno ser que segurava não tinha grandes semelhanças com um engenho explosivo.
- Chama-se Bernardo, e é teu filho. – Descarregou Raquel ao passar-lhe a criança para as mãos.
Mário deixou-se ficar, atordoado. Aquele nível de surpresa teria feito muitos deixar o miúdo cair no chão. Nele, teve o efeito contrário. Despertou nele um estranho instinto de protecção do qual nem o próprio suspeitava ser possuidor.
- Lembras-te daquela noite em Aveiro? Pois é, nove meses depois nasceu o Bernardo…
Mário lembrava-se. Tinha ido a Aveiro para recolher uns pertences do pai, que uma prima afastada tinha guardado. Passara lá a noite, o temporal não aconselhava à condução. Foi no hotel, mais exactamente no bar do hotel, que viu Raquel, deslumbrante, num vestido preto bastante revelador. Eram onze e meia da noite, e Mário soube-o porque olhou para o relógio, só para ver se o tempo tinha parado. Como sempre, não esperava que ela lhe retribuísse o olhar. Enganou-se. Raquel não só o retribuiu, como também se levantou, e parecia estar a encaminhar-se para ele. Estático, admirado, balbuciou um “sim” quando ela lhe perguntou se podia juntar-se a ele. Conversaram durante algum tempo, Mário com o seu ar surpreendido, Raquel num tom ao mesmo tempo distraído e convidativo. Chegou para encantar Mário, que respondeu de novo um inseguro “sim” quando ela lhe perguntou se tinha um quarto e se queria subir com ela. Subiram pois, desajeitadamente enrolados em beijos. Entraram no quarto, rolaram na cama, despiram-se, Mário como se lutasse com um colete-de-forças, Raquel com a segurança de quem sabia o que estava a fazer (e o que tinha vestido). Fizeram amor – ou pelo menos fora isso que parecera a Mário – durante uma marca recorde de sete minutos. Deitaram-se, cada um para seu lado, ofegantes. Em resposta ao “gostaste?” de Mário, Raquel debitou um “são quinze contos”. Levantou-se e vestiu-se, enquanto um desesperado Mário procurava o dinheiro na carteira, maldizendo o seu estúpido elevar de expectativas.
Sim, Mário lembrava-se perfeitamente dessa noite.
- Pois é, ele é teu filho, e supus que o quisesses conhecer – explicou Raquel, de olhos postos na criança – para além disso estou com uns problemas. Quero que tomes conta dele durante uns tempos.
Mário pensou naquilo tudo, ainda meio confuso. Tinha um filho. Não estranhou o ano e tal que ela levara a contar-lhe. Nem fez bem as contas. Que é que interessava se as probabilidades de ter feito um filho na primeira e última vez que tinha tido relações com outra pessoa era ínfima? Afinal de contas, era pai!
- Mas tens a certeza que queres que eu fique com ele? Que é que se passa contigo, tas doente?
- Tenho uns problemas, preciso de tempo para os resolver. Não me posso dar ao luxo de andar com um puto às costas.
A frieza com que ela disse aquilo deixou Mário em estado de alerta. Não podia deixar o seu filho entregue a uma pessoa daquelas. Faria o que fosse preciso para ficar com ele, para o proteger.
- Tá bem, ele fica comigo.
- E tenho de te pedir outra coisa. Preciso que me emprestes dinheiro. Cinco mil euros.
Mário nem quis saber para quê. O dinheiro não era uma preocupação naquele momento.
- Agora não tenho aqui o dinheiro pra te dar, mas passo-te um cheque. Segunda-feira podes levantá-lo.
Assim que se viu com o pedaço de papel na mão, Raquel virou costas e saiu.
Às nove e meia da manhã de Segunda-feira Mário tinha já cinco mil euros a menos na sua conta. Completa a transacção, a mãe do seu filho esfumou-se, não deixando vestígios. Mário também não foi à sua procura. A sua vida tinha agora um novo centro – girava em torno de Bernardo. Meteu a primeira semana de férias da sua vida e passou-a em exclusivo com ele, a preparar a nova vida a dois. Levou-o a médicos, pensando que, com uma mãe daquelas, a criança podia perfeitamente trazer consigo algumas surpresas. Incrivelmente, Bernardo estava de perfeita saúde. Saudável, risonho, um miúdo lindíssimo. Deus parecia finalmente ter reparado em Mário. Com um olhar generoso, para o compensar.
Deixava Bernardo na creche às nove da manhã, e demorava sempre mais de quinze minutos a despedir-se. Corria para o emprego, chegando sistematicamente atrasado. As horas, passava-as a pensar no filho, ao mesmo tempo que organizava os ficheiros naquele buraco esquecido. Quando batiam as quatro da tarde, hora de saída, já Mário ia a meio da rua, correndo para ir buscar Bernardo. As empregadas da creche não se cansavam de assistir àqueles reencontros entre os dois. Nunca tinham visto um pai tão extremoso, tão carinhoso, sempre ansioso por ver o rebento. E Bernardo, ele também, assim que aprendeu a andar, começou a correr para o pai. Mário passava horas a falar com Bernardo. Quando Bernardo disse a sua primeira palavra, Mário chorou de alegria. Naquele momento, como em tantos outros desde que o seu filho entrara na sua vida, apercebeu-se de que nunca se sentira tão feliz.
E de repente, ao fim de um ano e meio, o telefonema.
- Olá Mário.
Era Raquel. Depois de tanto tempo, nunca esperara voltar a ouvir aquela voz. Respondeu com a agressividade de um pai que sente o perigo perto do seu filho.
- Que é que queres?
- Calma, Mário, não quero nada. Só preciso de ver o meu filho, tenho saudades dele…
O Bernardo deixou de ser teu filho no momento em que o largaste comigo.
Desligou-lhe o telefone na cara. Sentou-se numa cadeira, ligeiramente agoniado. O medo de perder Bernardo era irracional, maior que qualquer outro que alguma vez sentira.
O telefone tocou de novo. Deixou-o tocar, aproveitando para recuperar o fôlego. Pegou no telefone, com a mão suada, nervoso e atendeu.
- Mário, por favor, preciso de o ver… Ele é meu filho…
O tom de voz dela contrastava com o daquele dia, um ano e meio antes. Quente e frio, na mesma pessoa. Ponderou a situação, durante uns segundos.
- Mário, tas aí? Responde! – Raquel veio arrancá-lo aos seus pensamentos.
- Sim, tá bem. Como é que queres fazer?
- Podemo-nos encontrar onde quiseres…
- É-me indiferente.
- Naquele jardim que há aí ao pé de tua casa… Amanhã à tarde? Talvez às três? Como é Domingo…
- Tá bem. Às três, então. Adeus.
- Mário… Obrigado.
Desligou. Tentou afastar da cabeça a ideia de que ela voltara para ficar com o seu filho. Não, não podia ser. Afinal de contas, ela era… Não, ela não podia querer ficar com Bernardo. Acalmou-se. Foi deitar o filho, que tinha estado entretido em frente à televisão e agora bocejava ensonado. Leu-lhe uma história e ficou a observá-lo a adormecer. Adormeceu também, sentado no chão ao lado da cama de Bernardo, com a cabeça deitada junto ao peito do seu filho, embalado pela sua respiração suave.
Enquanto andava de mão dada com Bernardo a caminho do encontro, no dia seguinte, os seus medos estavam já controlados. Acordara calmo, confiante de que ainda teria muito tempo pela frente junto do seu filho, suficiente para o ver crescer e tornar-se num homem.
Avistou Raquel, ao longe, ao pé do lago. Estava acompanhada. Ele era grande. Procurou uma palavra para o descrever. Não, ternurento não funcionava. Violento, talvez. Segurou a mão de Bernardo com mais força, assegurando-se de que ele ainda ali estava.
- Olá Mário – cumprimentou-o Raquel quando se aproximou – Este é o meu marido, Sérgio.
“Marido?!”, pensou Mário, tentando manter um ar descontraído. Sérgio estendeu-lhe a mão para o cumprimentar, embora não com a cara de quem queria fazer novos amigos. Mário apertou-a, ou melhor, foi esmagado por ela.
- Olá Bernardo! – Disse Raquel com uma curta dose de alegria, quando se baixou de braços abertos para o receber. Bernardo não se mexeu. Olhou para o pai, perguntando com o olhar se era seguro. Mário assentiu, e a criança aproximou-se. Raquel abraçou-o. Ele manteve-se imóvel, com os bracinhos estendidos ao longo do corpo.
Raquel pôs-se novamente de pé, e Bernardo aproveitou para se ir agarrar às pernas do pai, assustado. Com um certo tom de arrependimento nas suas palavras, Raquel disse:
- Mário, não te queria dizer pelo telefone… Mas eu quero levar o Bernardo comigo.
Pânico. Não sabia o que fazer. O instinto fê-lo puxar Bernardo para trás de si. A criança, sem perceber o que se estava a passar, agarrou-se ainda mais às suas pernas, num gemido silencioso.
Quando acordou não se conseguia lembrar de nada. Doía-lhe tudo, e rapidamente descobriu porquê. A boca doía-lhe porque lhe faltavam três dentes. Doía-lhe o braço porque devia estar partido, pelo menos foi o que depreendeu pela nova e estranha posição em que ele se encontrava. Tudo o resto, estava pura e simplesmente inchado e, portanto, doía. Ah, já se lembrava, tinha apanhado uma carga de porrada. Bernardo, esse, estava sentado no banco de jardim ao seu lado, a chorar. Quando viu o pai a acordar, correu para ele, provocando-lhe uma enorme dor ao atirar-se-lhe para cima. Apesar de tudo, Mário estava eufórico. Tinha conseguido ficar com Bernardo. Tinha enfrentado a besta, o “marido” de Raquel, e embora mal lhe tivesse conseguido tocar (tirando o contacto entre o punho de Sérgio e a sua boca, o seu braço, as suas costelas, etc.), o sacrifício fizera Raquel compadecer-se. “Se está disposto a levar uma sova destas pra ficar com o puto, não lho posso levar…”. Devia ter sido mais ou menos isto que lhe passara pela cabeça, porque ao fim de algum tempo, demasiado, pelas contas de Mário, ela pediu ao “marido” para parar. Olhou ligeiramente apreensiva para os ferimentos de Mário, olhou para o filho, lavado em lágrimas, e pensou que já tinha causado demasiado sofrimento ali. Virou as costas e foi-se embora, num passo largo, seguida pelo seu “doce acompanhante”.
Mário viveu feliz. Talvez não para sempre, mas durante bastante tempo. Bernardo também. No fim, todos lutamos por aquilo que precisamos. Eles precisavam um do outro.