Um mais um igual a três

domingo, abril 16, 2006

7 e meia da manhã, Domingo de Páscoa, depois de dominar o bicho que é este Template

...E depois apeteceu-me continuar...

-Então que é que se passa?
O taxista não respondeu. Má ideia tentar fazer conversa com aquele homem. O ar de cão sarnento não aconselhava o contacto, mas Ricardo estava tão nervoso que aquilo saiu-lhe sem querer. Bom, restava continuar a brincar com as chaves de casa. Foi uma longa viagem. O silêncio parece estender o tempo, quando estamos ansiosos. Ao entrar no elevador do seu prédio, reviu mentalmente o discurso que tinha preparado. Tinha vindo a adiar aquele momento durante os últimos 3 meses, e embora tivesse tido de ganhar coragem para fazer aquilo, continuava convencido de que aquela era a única solução.
Quando meteu a chave na fechadura, teve uma sensação de “déjà vu”. Já se tinha visto a entrar assim em casa. Já tinha visto aquelas revistas atiradas para cima do sofá. Atravessou o corredor em direcção ao quarto, como que repetindo um movimento programado. De repente, Ana saiu da casa de banho, enrolada na toalha de banho, deixando atrás de si uma nuvem de vapor. Já tinha visto aquela imagem nalgum lado. E não fora só nos seus sonhos.
- Trouxeste-me o maço de tabaco que eu te pedi?
A sensação de “déjà vu” acabava ali. Como sempre, Ana abria a boca e estragava tudo. Seguiu-a até ao quarto, decidido a pôr um ponto final naquilo. Sentou-se na cama, observando-a a vestir-se em frente ao espelho. E quase perdeu a coragem outra vez. Sempre que via aquelas costas nuas, a curva suave daquele pescoço, sentia a sua vontade vergar-se à dela. Mas desta vez controlou-se. Respirou fundo.
- Porque é que tas praí a suspirar?
Era o momento.
- Porque preciso de falar contigo. Tive a pensar em nós, nisto tudo, na vida que levamos... Quero o divórcio, Ana.
Ela virou-se, calmamente, com aquela cara que fazia quando o queria deitar abaixo.
- Tens a certeza que é isso que queres?
Não parecia surpreendida. Não fora assim que imaginara a conversa. Pensava que ela lhe ia perguntar se estava parvo, se tinha andado a beber. Responder-lhe-ia que não, que não a amava, que precisava de espaço, que aquela relação lhe estava a consumir o que lhe restava de dignidade e respeito por si próprio. Na sua cabeça, Ana gritava que a culpa era dele, que era um fraco, que não era sequer um homem. Imaginou-a a chorar, a pedir-lhe para pensar melhor, a perceber finalmente que a sua atitude estava a arruinar o casamento. Nunca pensou que ela se mantivesse tão calma.
- Bom, se tens a certeza, podes fazer as malas e sair.
Enquanto tentava perceber o que se tinha passado ali, Ricardo fez uma pequena mala, deixando para trás a maior parte das roupas, que viria buscar noutro dia, quando Ana não estivesse. Quando passou novamente pela casa de banho, encontrou a porta fechada. Disse adeus, mas a barreira de silêncio que encontrou pela frente convenceu-o de que era melhor seguir caminho. Dormiria em casa da mãe nessa noite.

- Pode ficar com o troco
Desta vez Ricardo agradeceu a Deus pelo taxista silencioso que lhe enviara. Dormira mal. Passara a noite a lutar com os lençois, pensando na conversa que tinha tido com a sua agora quase ex-mulher. Não fazia grande sentido que tudo tivesse sido tão fácil. Ana não era uma mulher fácil, antes pelo contrário. Todas as fases do seu relacionamento com ela tinham sido difíceis. Tinha sido difícil conhecê-la. Ela era fútil, ele não era propriamente candidato a nenhum prémio de beleza. Só aceitou ir tomar café com ele depois de mais de uma dúzia de convites. Demorou dois meses para conseguir beijá-la. De alguma forma, o desafio tornava tudo aquilo ainda mais aliciante. No entanto, quando finalmente começaram a namorar, Ana revelou-se não a pessoa distante que até aí fora, mas uma namorada impossível. Ciumenta, possessiva, exigente, Ana juntava a todas estas inegáveis “qualidades” uma capacidade notável para o envergonhar em locais públicos. Maior parte das vezes até parecia ser sem intenção, mas havia ocasiões em que Ricardo podia jurar que via um sorriso maldoso a nascer na cara dela no mesmo momento em que o via corar.
Tentara em vão escapar à vontade dela de se casar o mais rápido possível.
Ao fim de quatro meses de namoro, estava a vê-la a entrar na igreja de braço dado com o pai, enquanto ele, mesmo sem a certeza de a amar, assistia impotente ao desenrolar dos acontecimentos. E depois aqueles três meses infernais de casamento. Juntamente com a aliança no dedo, Ana tinha ganho toda uma série de estados de humor que Ricardo nunca conhecera, nenhum deles agradável. Se o sexo não era propriamente uma constante antes de se casarem, depois do copo-de-água passara a ser uma ausência confirmada e devidamente lamentada. A cada novo dia, Ana tinha uma justificação diferente para se poder virar para o outro lado e adormecer. Começou na noite de núpcias, com um “hoje não, que o casal do quarto ao lado pode ouvir”, que deixou Ricardo estupefacto, visto que estavam numa pousada que era de facto um castelo, num quarto com paredes de pedra com um metro de espessura, num corredor em que o único quarto, para além do deles, que tinha gente, era o de um casal de 80 anos com o poder auditivo de um par de postes de iluminação. Na verdade, desde essa noite, todos os avanços de Ricardo esbarravam no livro de desculpas da sua mulher, algumas delas repetidas, nenhuma convincente. A par deste gosto pela castidade, Ana ganhara outro – endividar o marido. Nunca conhecera uma mulher tão ávida de compras. Ricardo, que ganhava bastante dinheiro, graças ao seu jeito natural para vender carros, viu-se, no espaço de três meses, rodeado de uma colecção de sapatos suficientemente extensa para calçar todo um convento de Carmelitas Descalças, ao mesmo tempo que a sua conta bancária secava de forma definitiva. E não podia fazer nada, visto que, quando casara, ela o obrigara a assinar o contrato de comunhão total de bens.
E o pior de tudo era quando ela falava. Até se casarem, Ana sempre parecera ser bastante inteligente. A partir do momento em que saíram da igreja, parecia que aqueles bagos de arroz com que levara lhe tinham afectado o cérebro definitivamente. Não mandava uma para a caixa. Os únicos momentos em que parecia ganhar lucidez eram aqueles em que o insultava. Aí lembrava-se logo de umas quantas frases o atingiam directamente onde doía. E no entanto, parecia fazer tenções de passar o resto da vida casada com ele. Aquilo era um inferno, e não dava sinais de vir a ficar suportável nos tempos mais próximos. Por isso planeara toda aquela conversa para o dia anterior, para fugir daquele casamento o mais depressa possível.
Postas as coisas em perspectiva, deixou imediatamente de se questionar sobre a atitude da sua mulher no dia anterior. Estava safo, livrara-se daquilo e, com sorte, perdia só metade do que era seu.
Nessa noite, Ricardo dormiu sossegado, achando que a sua vida mudara para melhor.

Foi com toda a calma do mundo que Ana entrou no avião naquela manhã luminosa de Junho. Era uma mulher rica. Os últimos três meses, passara-os a usar o nome e os cartões de crédito do marido para fazer uma série de investimentos ilícitos e, portanto, bastante lucrativos. Deixara vestígios que inevitavelmente conduziriam a alguém. Mas esse alguém seria Ricardo. Tratara disso pessoalmente, ao telefonar para a Policia Judiciária, dando algumas pistas sobre aquilo que podiam encontrar se procurassem bem na sua casa. Aquele pateta nem sabia o que lhe estava prestes a cair em cima. Quanto a ela, sempre tivera vontade de emigrar para um país de clima quente e praias paradisíacas.
Já sentada no seu lugar, Ana tirou uma fotografia da carteira. Na fotografia, estava abraçada ao seu marido, num cenário da mais pura felicidade. Mas o marido não era Ricardo. O marido da fotografia era Francisco. Francisco tinha morrido um ano antes. O seu carro tinha chocado de frente com um camião, numa curva em que perdera os travões. Era um carro usado, que Francisco tinha comprado pouco tempo antes. O vendedor garantira que estava em óptimo estado. O especialista a que Ana pagara para analisar o carro garantira que os travões estavam danificados, e era impossível o vendedor não saber disso. Quando ouviu isto, Ana jurou pela memória de Francisco que se iria vingar daquele vigarista que lhes vendera o automóvel, da forma mais tortuosa que encontrasse. Passados cinco meses, casou com ele.

5 Comentários:

  • Fico contente por te teres aventurado na blogosfera... aguardam-se grandes feitos*

    Por Blogger Koala, Às 23:01  

  • Ola Zé, chamo-me Joana, sou irmã da tua "afilhada" Martinha. Estava aqui a ler o teu blog e devo dizer que adorei este texto. Fez-me sorrir, rir e finalmente fiquei de boca aberta :-) Boa historia! a Vida é mesmo assim: louca! Continua a escrever. Beijinho

    Por Anonymous Anónimo, Às 15:25  

  • Muito bom este texto :)

    Por Blogger Galochas, Às 01:14  

  • owoooo...adorei este texto!n sei o que gostei mais...decerto de tudo!como é que arranjaste este fim?!so vindo de uma mente como a tua..:) continua miudo!quanto à parte do separar...é sempre dificil,custa mais ainda quando nos apercebemos que quem no inicio era a pessoa da vida se transforma numa estranha de quem nos queremos ver livres!Fizeste-me sentir angútia do momento...Parabens!;) Viva escrita criativa ha?:P

    Por Anonymous Anónimo, Às 02:54  

  • Very cool design! Useful information. Go on! » » »

    Por Anonymous Anónimo, Às 06:03  

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