Um mais um igual a três

quinta-feira, maio 18, 2006

O Jogo

Na mesma mesa em que tantas vezes vira a sua mãe preparar o jantar, jaziam agora inertes as cartas espalhadas de um baralho. Acabado que estava o seu jogo de solitário, Vasco Vicente preparava-se para tomar a decisão da sua vida.

Nascido em berço de ouro, Vasco cedo se habituara a olhar o mundo à sua volta com uma certa indiferença. Nunca precisara de despender muitas energias para conseguir aquilo que queria. Esta lógica aplicara-se a tudo na sua vida. Concluíra o seu curso sem grande dificuldade (ou grande mérito, visto que todos os seus professores conheciam o seu pai, o maior mecenas daquela universidade). Foi com naturalidade que se viu à frente de uma das empresas da família, uma fábrica de enlatados que qualquer um seria capaz de gerir. Sem surpresa, descobriu que o funcionamento da fábrica era pouco mais interessante que a rotina da sua vida. Era quase tão fácil ganhar dinheiro ali como adormecer nas aborrecidas reuniões com o sindicato.

Também Teresa tinha vindo de uma família com posses. Vira Vasco pela primeira vez numa festa de gala, passeando a sua indiferença pelo meio dos vícios daquela elite lisboeta. Agia como se já lhes conhecesse os truques e manhas. Longe de o surpreenderem, causavam-lhe enfado. O desencanto do olhar de Vasco encantou Teresa.
- Festa divertida, não acha?
Ele fingiu olhar para a taça de ponche com um ar interessado.
- Está bom, o ponche?
Viu que a manobra não a ia afastar.
- Não sei, ainda não o provei – suspirou resignado.
Olhou-a finalmente nos olhos. Estranhamente, não se sentiu repelido por ela. Não se parecia com aqueles predadores. Passou o resto da noite com Teresa. E o resto da semana. E o conforto que experimentavam na companhia um do outro, Teresa encantada com Vasco, Vasco desencantado com o resto do mundo, levou-os ao altar.

Vasco descobriu no casamento uma nova rotina. Rapidamente se encontraram a partilhar a cama, de costas voltadas um para o outro, a mesa, com os olhares fixos nos pratos, a vida, separados. Sebastião chegou nove meses depois de Filomena, e Teresa, que acreditava que as crianças poderiam trazer novo alento àquela união, facilmente percebeu que nem assim a monotonia se ia alterar.

À noite, quando se despedia da fábrica, Vasco demorava algum tempo antes de chegar a casa. Não tinha pressa para voltar para aquelas noites cada vez mais aborrecidas, sempre iguais, ora com os filhos a chorar, ora com a mulher que, em boa verdade, nunca tinha amado. Experimentou outras mulheres, refugiou-se durante uns tempos no álcool, tentou até encontrar prazer nas drogas, mas a apatia que sentia não desaparecia. Acabada a noite, regressado a casa, limitava-se a um seco “Boa noite” a que Teresa já não respondia.

Até àquele dia em que Xavier lhe mudou a vida. Tinham jantado bem e bebido ainda melhor. Quando o amigo lhe sugeriu uma ida ao casino, Vasco ponderou a sua opção, voltar para casa, e aceitou sem hesitações.Xavier arrastou Vasco para um dos casinos mais conhecidos e afamados da capital. Naquela noite, o casino estava a abarrotar e o ruído produzido pelas slot machines era quase insuportável. Por entre o alarido, Vasco e Xavier iniciaram uma partida de póquer, o jogo predilecto do seu amigo, que há muito frequentava estabelecimentos de diversão nocturna. Com um ar de satisfação estampado no rosto, Xavier recebia as cartas, certo de que a sorte lhe iria sorrir. Afinal de contas, ele era um velho e experiente jogador, como Vasco não tardou em descobrir. Pela noite fora, as vitórias sucessivas do seu amigo irritavam Vasco, fazendo-o querer jogar cada vez mais. Tudo o que queria era ganhar uma partida. Pela primeira vez na vida via o seu desejo negado.
-Oh Vasco, não vale a pena ficares nervoso, a sorte de principiante há de chegar! - Dizia o amigo com uma ironia que o deixava ainda mais furioso
Era quase de madrugada quando Vasco finalmente levou a melhor ao seu amigo. Um contentamento súbito encheu-lhe o peito. Apercebeu-se de que a noite passara depressa, os problemas ficaram esquecidos. Aquela fuga à rotina deixou-o saciado.

Passou a ir ao casino todas as noites, às vezes mesmo sem Xavier que, com o tempo, começara a perder dinheiro no jogo e a acumular dívidas. Vasco gostava muito de jogar, mas não era lá grande jogador. Apesar disso apostava alto. Pouco a pouco, Vasco largou tudo. Perdia mais vezes que ganhava, o que lhe custou primeiro todo o seu dinheiro e depois a fortuna que o pai lhe deixara. A fábrica, que sempre fora tão lucrativa, com a ausência de uma mão no leme, começara também a andar à deriva. E não precisou de muito tempo para começar a dar prejuízo.

Enquanto os negócios de Vasco naufragavam, a sua vida pessoal ruía. Deixou de se dar com os poucos amigos que ainda tinha. Eles, gradualmente, deixaram de notar as suas ausências. Sem grandes remorsos, deixou de frequentar as festas, jantares e afins que antes tanto o aborreciam. Com o tempo que passava em mesas de jogo, Vasco parecia ter mudado de casa. Teresa já só o via quando ele ia trocar de roupa, comer qualquer coisa, afogar-se na cama por umas horas. Passava tanto tempo fora que não via os seus filhos crescer. E Teresa, que já passara por tanto, atingiu o ponto de saturação… Deixou-o, foi viver com a mãe. E no divórcio levou-lhe a casa e metade do pouco que restava a Vasco.

Ficou desesperado. Precisava de dinheiro para sustentar aquele vício que o consumia. Não conseguia viver afastado daquela mesa verde. Foi aí que se lembrou de apostar a última coisa que lhe restava. A herdade dos pais, na terra dos avós. Era uma propriedade esquecida, perdida entre montes, num canto esquecido da Beira Interior. Foi com um tremor de nervosismo no peito que entrou naquela casa. A sua última hipótese de ganhar. O sítio trazia-lhe algumas recordações de infância, mas não as suficientes para o fazerem desistir de a apostar. Conseguiu arranjar um jogo em Coimbra, através de um companheiro de vício, e preparou-se para a jogada da sua vida.

Nessa noite, demorou a arranjar-se. Ele, que já nem perdia tempo em frente ao espelho, barbeou-se cuidadosamente, vestiu-se com esmero, e até ousou perfumar-se. É que esta noite era muito especial. Dirigiu-se ao apartamento em que tinham combinado. Era um jogo ilegal, mas tanto lhe fazia. Trocou o título de propriedade pelas fichas combinadas e dirigiu-se à mesa Os seus parceiros de jogo, suspeitos do costume, com quem já se tinha cruzado inúmeras vezes, nem o reconheceram, acostumados que estavam ao seu ar desleixado.

Começou cuidadosamente, apostando pequenas quantidades de fichas. Aos poucos, o seu pecúlio ia crescendo. Observou demoradamente os companheiros de jogo, enquanto recebia as cartas. Não desmanchou a expressão, nem quando viu a mão inacreditável que lhe tinha sido dada. Entre os seus dedos alinhavam-se cinco cartas de copas. Um Rei, uma Dama, um Valete, um Dez e um Nove. Era quase impossível perder ali. Decidiu apostar a casa perante a estupefacção dos parceiros. Estes, apesar de admirados, decidiram que ele estava a fazer bluff. Já tinham visto Vasco jogar demasiadas vezes para acreditar que ele podia ganhar. Ainda o tentaram dissuadir, mas Vasco mostrou-se irredutível. Igualando a aposta, obrigaram Vasco a abrir o jogo. Sentia-se dominado pela excitação. A mera hipótese de poder perder tudo numa jogada tornava as coisas mais emocionantes. Mas se vencesse agora, a jogada da sua vida estava ganha. Quando todas as cartas foram postas em cima da mesa, Vasco não queria acreditar. Tinha ganho o jogo. O seu coração batia a um ritmo que nunca tinha experimentado. Estava excitado, a adrenalina corria-lhe pelo sangue de uma forma galopante. “Isto é que é felicidade…”. E, subitamente, o seu coração parou. Caiu em cima da mesa, com os olhos pousados sobre as fichas. Morreu, mas nos seus lábios dançava um sorriso. Vasco só conheceu a felicidade quando correu o último e maior risco da sua vida.

Vamos agradecer ao Paulo e ao Jorge, o meu grupo de E. Criativa, que junto comigo criaram esta "estorinha". Obrigado

2 Comentários:

  • eu vi-te a escrever isso na ucp :P

    Por Anonymous Anónimo, Às 19:58  

  • Para mostrar-te que me lembro de ti, no recanto do meu lar e me lembro de ler um texto que me aconselhaste. Bastante bom!

    Por Anonymous Anónimo, Às 22:38  

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