Um mais um igual a três

quinta-feira, abril 27, 2006

Prémio "All the other kids are doing it!"

1º - Pai, dás.me dinheiro pra comprar cocaina?

2º - Vá lá amor, vamos fazer amor no rabinho...

3º - Mãããe, deixa-me ir ao Lux!

terça-feira, abril 25, 2006

Do you think being miserable will ever make you happy? It won't. It will olnly make you miserable.

- Achas mesmo que isso é maneira de lidar com a situação?
- Acho. Afinal de contas é só uma questão de perspectiva. Tu achas que ele é um cabrão. Eu acho que ele é um bom pai e um bom marido. Pra mim isso chega.
Nem mesmo ela acreditava nas próprias palavras. Não existia nenhuma questão de perspectiva. Margarida sabia que estava errada, que o seu marido não a amava, que se mantinha no casamento pela comida, cama e roupa lavada. E ainda assim, não conseguia dizer isto a mais ninguém.
- Eu sei que tens medo de ficar sozinha, Margarida, mas isto não é maneira de viver. Por amor de Deus, ele tentou saltar-me pra cima. O tipo não tem escrúpulos! Sabes lá com quantas mulheres ele anda enrolado enquanto lhe fazes o jantar?
Patrícia tinha razão. Se era capaz de se fazer assim à sua melhor amiga, era mais que provável que andasse por aí a pular de cama em cama. Se calhar se tivesse sido Patrícia a casar com ele, nunca teria de passar por aquela situação. Mas Patrícia era bonita, era forte, não tinha tido dois filhos, tinha uma carreira de sucesso, enfim, teria tudo para o poder pôr na rua sem grandes problemas. Ela não. Dependia dele. Sempre dependera, desde o início.
- E pra onde é que eu vou depois? O que é que eu faço? Sabes perfeitamente que ele não vai querer ficar com as crianças. Patrícia, eu sou uma secretária, nunca vou passar disso. Adoro os meus filhos, mas sei que é impossível tomar conta deles sozinha. Não tenho dinheiro pra isso. Nem agora. Nem nunca.
A conversa acabava sempre aqui, o argumento do dinheiro punha sempre Patrícia em “cheque”.
- Vai pra tribunal, se for preciso, fica-lhe com o dinheiro. Eu pago o advogado, se for preciso. Sirvo de testemunha. Se for preciso contratamos um detective pra o seguir. Não há juiz neste país que não te dê razão. Só tens de dar o primeiro passo. Não consigo mais ver-te a sofrer assim.
Prometeu que ia pensar nisso. Patrícia acabou por ir para casa, pouco depois. Eram três da manhã, e Henrique ainda não tinha chegado.
Foi para a cozinha. Ainda tinha coisas para fazer. Ao tirar a roupa da máquina de lavar reparou no colarinho da camisa dele. Marcas de batom. Certamente não eram suas. Deixara de se maquilhar quando Sebastião nascera. Levou-a para a bancada da cozinha. As suas lágrimas não pareciam ajudar o batom a desaparecer. Enquanto esfregava, pensava em Henrique. Naqueles primeiros tempos de casado, em que ele chegava todos os dias a casa, trazendo tantas vezes flores. Naquelas noites em que sentia que ele a amava.
Quanto tempo demoraria Henrique a aperceber-se de que ainda a amava?

domingo, abril 23, 2006

Pensamento do dia

Viva a FashionTV

Amor de mãe

Desde pequeno, Mário estava habituado a não esperar muito da vida. Em retrospectiva, parecia-lhe natural. Nunca fora alto ou forte, bonito ou charmoso, rico ou bem-sucedido. Nunca se distinguira por nada em especial. Era apenas mais um estranho na multidão. Mais do que adaptar-se à sua sorte, Mário vivia de acordo com ela. Não tinha expectativas da vida, só queria seguir o seu caminho sem ser incomodado. Nunca pedira nada a Deus.
Tinha um trabalho normal, numa qualquer cave de um qualquer edifício de uma qualquer repartição pública. Ganhava pouco, mas gastava ainda menos, e por isso acumulava todos os meses mais um tanto, num pé-de-meia para o qual ainda não tinha um destino. Vivia sozinho, no pequeno apartamento em que nascera e em que ainda descansava a mobília de origem. Não tinha fotografias nem molduras, em parte por não ter amigos, em parte por já não ter família. As suas relações sociais eram escassas e sem significado, talvez pelo carácter marcadamente desinteressante da sua pessoa. Filho único de filhos únicos, nem mesmo quando os seus pais morreram, atropelados por um autocarro da Carris, Mário ousou amaldiçoar o seu azar. Aparentemente, Deus tinha-se esquecido dele, desconhecia a sua existência.

Foi por isso que, no dia em que Raquel lhe bateu à porta, Mário ficou ainda mais surpreendido. Tinha-o arrancado ao seu ritual das tardes de Sábado, ver televisão e comer chocolate, para lhe atirar uma bomba para o colo. No sentido figurado, porque o pequeno ser que segurava não tinha grandes semelhanças com um engenho explosivo.

- Chama-se Bernardo, e é teu filho. – Descarregou Raquel ao passar-lhe a criança para as mãos.

Mário deixou-se ficar, atordoado. Aquele nível de surpresa teria feito muitos deixar o miúdo cair no chão. Nele, teve o efeito contrário. Despertou nele um estranho instinto de protecção do qual nem o próprio suspeitava ser possuidor.

- Lembras-te daquela noite em Aveiro? Pois é, nove meses depois nasceu o Bernardo…

Mário lembrava-se. Tinha ido a Aveiro para recolher uns pertences do pai, que uma prima afastada tinha guardado. Passara lá a noite, o temporal não aconselhava à condução. Foi no hotel, mais exactamente no bar do hotel, que viu Raquel, deslumbrante, num vestido preto bastante revelador. Eram onze e meia da noite, e Mário soube-o porque olhou para o relógio, só para ver se o tempo tinha parado. Como sempre, não esperava que ela lhe retribuísse o olhar. Enganou-se. Raquel não só o retribuiu, como também se levantou, e parecia estar a encaminhar-se para ele. Estático, admirado, balbuciou um “sim” quando ela lhe perguntou se podia juntar-se a ele. Conversaram durante algum tempo, Mário com o seu ar surpreendido, Raquel num tom ao mesmo tempo distraído e convidativo. Chegou para encantar Mário, que respondeu de novo um inseguro “sim” quando ela lhe perguntou se tinha um quarto e se queria subir com ela. Subiram pois, desajeitadamente enrolados em beijos. Entraram no quarto, rolaram na cama, despiram-se, Mário como se lutasse com um colete-de-forças, Raquel com a segurança de quem sabia o que estava a fazer (e o que tinha vestido). Fizeram amor – ou pelo menos fora isso que parecera a Mário – durante uma marca recorde de sete minutos. Deitaram-se, cada um para seu lado, ofegantes. Em resposta ao “gostaste?” de Mário, Raquel debitou um “são quinze contos”. Levantou-se e vestiu-se, enquanto um desesperado Mário procurava o dinheiro na carteira, maldizendo o seu estúpido elevar de expectativas.

Sim, Mário lembrava-se perfeitamente dessa noite.

- Pois é, ele é teu filho, e supus que o quisesses conhecer – explicou Raquel, de olhos postos na criança – para além disso estou com uns problemas. Quero que tomes conta dele durante uns tempos.

Mário pensou naquilo tudo, ainda meio confuso. Tinha um filho. Não estranhou o ano e tal que ela levara a contar-lhe. Nem fez bem as contas. Que é que interessava se as probabilidades de ter feito um filho na primeira e última vez que tinha tido relações com outra pessoa era ínfima? Afinal de contas, era pai!

- Mas tens a certeza que queres que eu fique com ele? Que é que se passa contigo, tas doente?

- Tenho uns problemas, preciso de tempo para os resolver. Não me posso dar ao luxo de andar com um puto às costas.

A frieza com que ela disse aquilo deixou Mário em estado de alerta. Não podia deixar o seu filho entregue a uma pessoa daquelas. Faria o que fosse preciso para ficar com ele, para o proteger.

- Tá bem, ele fica comigo.

- E tenho de te pedir outra coisa. Preciso que me emprestes dinheiro. Cinco mil euros.

Mário nem quis saber para quê. O dinheiro não era uma preocupação naquele momento.

- Agora não tenho aqui o dinheiro pra te dar, mas passo-te um cheque. Segunda-feira podes levantá-lo.

Assim que se viu com o pedaço de papel na mão, Raquel virou costas e saiu.

Às nove e meia da manhã de Segunda-feira Mário tinha já cinco mil euros a menos na sua conta. Completa a transacção, a mãe do seu filho esfumou-se, não deixando vestígios. Mário também não foi à sua procura. A sua vida tinha agora um novo centro – girava em torno de Bernardo. Meteu a primeira semana de férias da sua vida e passou-a em exclusivo com ele, a preparar a nova vida a dois. Levou-o a médicos, pensando que, com uma mãe daquelas, a criança podia perfeitamente trazer consigo algumas surpresas. Incrivelmente, Bernardo estava de perfeita saúde. Saudável, risonho, um miúdo lindíssimo. Deus parecia finalmente ter reparado em Mário. Com um olhar generoso, para o compensar.

Deixava Bernardo na creche às nove da manhã, e demorava sempre mais de quinze minutos a despedir-se. Corria para o emprego, chegando sistematicamente atrasado. As horas, passava-as a pensar no filho, ao mesmo tempo que organizava os ficheiros naquele buraco esquecido. Quando batiam as quatro da tarde, hora de saída, já Mário ia a meio da rua, correndo para ir buscar Bernardo. As empregadas da creche não se cansavam de assistir àqueles reencontros entre os dois. Nunca tinham visto um pai tão extremoso, tão carinhoso, sempre ansioso por ver o rebento. E Bernardo, ele também, assim que aprendeu a andar, começou a correr para o pai. Mário passava horas a falar com Bernardo. Quando Bernardo disse a sua primeira palavra, Mário chorou de alegria. Naquele momento, como em tantos outros desde que o seu filho entrara na sua vida, apercebeu-se de que nunca se sentira tão feliz.

E de repente, ao fim de um ano e meio, o telefonema.

- Olá Mário.

Era Raquel. Depois de tanto tempo, nunca esperara voltar a ouvir aquela voz. Respondeu com a agressividade de um pai que sente o perigo perto do seu filho.

- Que é que queres?

- Calma, Mário, não quero nada. Só preciso de ver o meu filho, tenho saudades dele…

O Bernardo deixou de ser teu filho no momento em que o largaste comigo.

Desligou-lhe o telefone na cara. Sentou-se numa cadeira, ligeiramente agoniado. O medo de perder Bernardo era irracional, maior que qualquer outro que alguma vez sentira.

O telefone tocou de novo. Deixou-o tocar, aproveitando para recuperar o fôlego. Pegou no telefone, com a mão suada, nervoso e atendeu.

- Mário, por favor, preciso de o ver… Ele é meu filho…

O tom de voz dela contrastava com o daquele dia, um ano e meio antes. Quente e frio, na mesma pessoa. Ponderou a situação, durante uns segundos.

- Mário, tas aí? Responde! – Raquel veio arrancá-lo aos seus pensamentos.

- Sim, tá bem. Como é que queres fazer?

- Podemo-nos encontrar onde quiseres…

- É-me indiferente.

- Naquele jardim que há aí ao pé de tua casa… Amanhã à tarde? Talvez às três? Como é Domingo…

- Tá bem. Às três, então. Adeus.

- Mário… Obrigado.

Desligou. Tentou afastar da cabeça a ideia de que ela voltara para ficar com o seu filho. Não, não podia ser. Afinal de contas, ela era… Não, ela não podia querer ficar com Bernardo. Acalmou-se. Foi deitar o filho, que tinha estado entretido em frente à televisão e agora bocejava ensonado. Leu-lhe uma história e ficou a observá-lo a adormecer. Adormeceu também, sentado no chão ao lado da cama de Bernardo, com a cabeça deitada junto ao peito do seu filho, embalado pela sua respiração suave.

Enquanto andava de mão dada com Bernardo a caminho do encontro, no dia seguinte, os seus medos estavam já controlados. Acordara calmo, confiante de que ainda teria muito tempo pela frente junto do seu filho, suficiente para o ver crescer e tornar-se num homem.

Avistou Raquel, ao longe, ao pé do lago. Estava acompanhada. Ele era grande. Procurou uma palavra para o descrever. Não, ternurento não funcionava. Violento, talvez. Segurou a mão de Bernardo com mais força, assegurando-se de que ele ainda ali estava.

- Olá Mário – cumprimentou-o Raquel quando se aproximou – Este é o meu marido, Sérgio.

“Marido?!”, pensou Mário, tentando manter um ar descontraído. Sérgio estendeu-lhe a mão para o cumprimentar, embora não com a cara de quem queria fazer novos amigos. Mário apertou-a, ou melhor, foi esmagado por ela.

- Olá Bernardo! – Disse Raquel com uma curta dose de alegria, quando se baixou de braços abertos para o receber. Bernardo não se mexeu. Olhou para o pai, perguntando com o olhar se era seguro. Mário assentiu, e a criança aproximou-se. Raquel abraçou-o. Ele manteve-se imóvel, com os bracinhos estendidos ao longo do corpo.

Raquel pôs-se novamente de pé, e Bernardo aproveitou para se ir agarrar às pernas do pai, assustado. Com um certo tom de arrependimento nas suas palavras, Raquel disse:

- Mário, não te queria dizer pelo telefone… Mas eu quero levar o Bernardo comigo.

Pânico. Não sabia o que fazer. O instinto fê-lo puxar Bernardo para trás de si. A criança, sem perceber o que se estava a passar, agarrou-se ainda mais às suas pernas, num gemido silencioso.

Quando acordou não se conseguia lembrar de nada. Doía-lhe tudo, e rapidamente descobriu porquê. A boca doía-lhe porque lhe faltavam três dentes. Doía-lhe o braço porque devia estar partido, pelo menos foi o que depreendeu pela nova e estranha posição em que ele se encontrava. Tudo o resto, estava pura e simplesmente inchado e, portanto, doía. Ah, já se lembrava, tinha apanhado uma carga de porrada. Bernardo, esse, estava sentado no banco de jardim ao seu lado, a chorar. Quando viu o pai a acordar, correu para ele, provocando-lhe uma enorme dor ao atirar-se-lhe para cima. Apesar de tudo, Mário estava eufórico. Tinha conseguido ficar com Bernardo. Tinha enfrentado a besta, o “marido” de Raquel, e embora mal lhe tivesse conseguido tocar (tirando o contacto entre o punho de Sérgio e a sua boca, o seu braço, as suas costelas, etc.), o sacrifício fizera Raquel compadecer-se. “Se está disposto a levar uma sova destas pra ficar com o puto, não lho posso levar…”. Devia ter sido mais ou menos isto que lhe passara pela cabeça, porque ao fim de algum tempo, demasiado, pelas contas de Mário, ela pediu ao “marido” para parar. Olhou ligeiramente apreensiva para os ferimentos de Mário, olhou para o filho, lavado em lágrimas, e pensou que já tinha causado demasiado sofrimento ali. Virou as costas e foi-se embora, num passo largo, seguida pelo seu “doce acompanhante”.

Mário viveu feliz. Talvez não para sempre, mas durante bastante tempo. Bernardo também. No fim, todos lutamos por aquilo que precisamos. Eles precisavam um do outro.

sábado, abril 22, 2006

Epifânia pós-Lux

A Olga é um bicho estranho...

The house rules

"Arrive as a couple, leave as couple. No videos, no photos. And the kids must never know."

quarta-feira, abril 19, 2006

O gordinho - parte 1

Até aquele dia, a vida de Alberto fora igual a tantas outras, normal. Na verdade, abaixo normal. Com menos cabelo que normal, de estatura inferior à do comum dos homens, a única coisa que Carlos tinha em grande quantidade era área corporal. A sua forma (redondinho) exercia um certo peso na sua vida sentimental – arrastava-a para baixo. Alberto até era queridinho, educadinho, um bom rapazinho. E já nem vivia com a mãe! Aproveitara o seu último aumento no banco – onde até tinha considerável sucesso, graças ao seu jeitinho para as contas, aprimorado durante os anos em que gerira o orçamento familiar – para se mudar para um pequeno mas confortável apartamento num bairrito simpático no centro da cidade. Decorara o espaço com um surpreendente bom gosto, considerando que nunca se destacara pela elegância ou primor estético.
Aos trinta anos ainda não tinha tido uma única relação séria. Alguns dos seus colegas desconfiavam da sua sexualidade, outros havia que pensavam que era virgem. Todos eles pensavam que ele ainda vivia com a mãe. Claro, Alberto já tinha estado com mulheres. Perdera a virgindade aos vinte e três anos, de uma forma anormalmente desajeitada. Apesar de ter consciência de que a maior parte das primeiras vezes não corria bem e quase nunca “correspondia às expectativas” (Alberto lia muitas revistas, e, na teoria, até sabia mais ou menos como é que as mulheres funcionavam), nunca se preparara para aquele desastre. Pelos vistos, Graça também não. Naquela noite, ao fim de dois meses de namoro, depois de toda a ginástica no banco detrás do seu Dois Cavalos, ela parecia imensamente triste. Ia jurar que, ao despedir-se da porta da sua casa, Graça deixara cair uma lágrima. Ficou destroçado. Nunca mais a viu. Não tinham sido feitos um para o outro. Alberto parecia mesmo não ter sido feito para ninguém. Era como uma peça de puzzle que não encaixava. De certa forma, Carlos não pertencia a puzzle nenhum. Não pertencia sequer ao universo dos jogos de tabuleiro… Era diferente dos outros homens, e talvez por isso ainda estivesse sozinho.
Era tímido, mas atencioso. Era simpático, mas ainda corava quando uma rapariga olhava para ele. Gostava de crianças e as crianças gostavam dele. Era um bom filho, fora um bom neto, e só não tinha sido um óptimo irmão porque o pai tinha fugido com uma “bailarina exótica” pouco tempo depois de Alberto ter dado os primeiros passos, deixando a mulher desamparada. Talvez este facto explicasse a admiração que Alberto tinha pelas mulheres. Explicava certamente a sua esmerada educação, adquirida pela convivência diária quase exclusiva com a Ester, sua mãe, e Dona Laura, a sua avó. Com elas aprendera a ser um homenzinho. Sempre fora uma criança dócil. Tornara-se um adolescente gentil. Crescera para ser um bom homem. Preocupava-se. Preocupava-se com o mundo, com as pessoas à sua volta, com todos aqueles com quem se cruzava. Com a velhota que vivia no andar de baixo, com o Sr. Horácio da farmácia, com aquela rapariga com quem chocara no passeio, com o porteiro do escritório e até mesmo com o cliente do outro lado do telefone. Era uma pessoa genuinamente boa. Não era um génio, mas sabia manter uma conversa. Frequentava cursos de cozinha e aprendera Italiano. Experimentara até a pintura durante algum tempo – o suficiente para se relembrar do porquê das suas notas a desenho. Todas as semanas comprava um novo produto milagroso para fazer crescer cabelo (aprendera com o exemplo do seu avô que um capachinho não era uma opção válida) e começara a frequentar um ginásio, embora os resultados tardassem a aparecer. No entanto continuava gordinho. E careca. E na balança do sexo oposto, a sua aparência física pesava uma tonelada, ao passo que as suas inegáveis qualidades como pessoa não pareciam pesar mais que uns quantos gramas.
Por isso, estava habituado a receber aquele sinal, o que mostra que, dê por onde der, uma rapariga não está interessada num rapaz. Alberto estava habituado a ver, estampado na cara das raparigas, aquele sorriso amarelo que todas elas conheciam e pareciam ter guardado para ele. Mostravam-no quando lhes dava passagem no elevador. Mostravam-no quando se apresentava num qualquer bar. Mostravam-no até quando o atendiam numa loja. Era um sorriso que nem chegava a ser sorriso, como se fossem sorrir mas, de repente, notassem que Alberto tinha qualquer coisa de incomodativo, como se um qualquer mau cheiro as estivesse a incomodar. Alberto percebia até que elas não quisessem viver felizes para sempre com ele. Mas aquele esgar de desagrado, disfarçado de gentileza, era um pontapé no seu ego que o atirava para fossos cada vez mais fundos. De vez em quando pensava em desistir, voltar para casa da mãe, cuidar dela. Ou talvez fugir para outro país, para um sítio onde desconhecesse a língua e pudesse perder-se, talvez a pastar um rebanho. Mas por cada vez que estes pensamentos lhe passavam pela cabeça, outro vinha afastá-los, a ideia de que algures por aí andava uma rapariga que não conhecesse aquele sorriso amarelo-assassino-de-esperanças, que gostasse dele e o deixasse fazê-la feliz. Porque mais que tudo, Alberto queria fazer alguém feliz. Mas as mulheres à sua volta não pareciam ligar à felicidade. Era estranho, mas o desdém, a mentira e a traição pareciam funcionar como um afrodisíaco. Não procuravam felicidade, procuravam uma parede para bater com a cabeça. E não queriam uma parede qualquer. Queriam uma parede bonita, com um belo bronzeado, atlética e com dinheiro para gastar. Não tendo nenhuma destas coisas, Alberto passava invariavelmente as suas noites sozinho, deitado na cama a olhar para o tecto, à espera do dia seguinte que prometia mudar a sua vida.

segunda-feira, abril 17, 2006

"Sometimes you're the windshield, sometimes you're the bug"

domingo, abril 16, 2006

7 e meia da manhã, Domingo de Páscoa, depois de dominar o bicho que é este Template

...E depois apeteceu-me continuar...

-Então que é que se passa?
O taxista não respondeu. Má ideia tentar fazer conversa com aquele homem. O ar de cão sarnento não aconselhava o contacto, mas Ricardo estava tão nervoso que aquilo saiu-lhe sem querer. Bom, restava continuar a brincar com as chaves de casa. Foi uma longa viagem. O silêncio parece estender o tempo, quando estamos ansiosos. Ao entrar no elevador do seu prédio, reviu mentalmente o discurso que tinha preparado. Tinha vindo a adiar aquele momento durante os últimos 3 meses, e embora tivesse tido de ganhar coragem para fazer aquilo, continuava convencido de que aquela era a única solução.
Quando meteu a chave na fechadura, teve uma sensação de “déjà vu”. Já se tinha visto a entrar assim em casa. Já tinha visto aquelas revistas atiradas para cima do sofá. Atravessou o corredor em direcção ao quarto, como que repetindo um movimento programado. De repente, Ana saiu da casa de banho, enrolada na toalha de banho, deixando atrás de si uma nuvem de vapor. Já tinha visto aquela imagem nalgum lado. E não fora só nos seus sonhos.
- Trouxeste-me o maço de tabaco que eu te pedi?
A sensação de “déjà vu” acabava ali. Como sempre, Ana abria a boca e estragava tudo. Seguiu-a até ao quarto, decidido a pôr um ponto final naquilo. Sentou-se na cama, observando-a a vestir-se em frente ao espelho. E quase perdeu a coragem outra vez. Sempre que via aquelas costas nuas, a curva suave daquele pescoço, sentia a sua vontade vergar-se à dela. Mas desta vez controlou-se. Respirou fundo.
- Porque é que tas praí a suspirar?
Era o momento.
- Porque preciso de falar contigo. Tive a pensar em nós, nisto tudo, na vida que levamos... Quero o divórcio, Ana.
Ela virou-se, calmamente, com aquela cara que fazia quando o queria deitar abaixo.
- Tens a certeza que é isso que queres?
Não parecia surpreendida. Não fora assim que imaginara a conversa. Pensava que ela lhe ia perguntar se estava parvo, se tinha andado a beber. Responder-lhe-ia que não, que não a amava, que precisava de espaço, que aquela relação lhe estava a consumir o que lhe restava de dignidade e respeito por si próprio. Na sua cabeça, Ana gritava que a culpa era dele, que era um fraco, que não era sequer um homem. Imaginou-a a chorar, a pedir-lhe para pensar melhor, a perceber finalmente que a sua atitude estava a arruinar o casamento. Nunca pensou que ela se mantivesse tão calma.
- Bom, se tens a certeza, podes fazer as malas e sair.
Enquanto tentava perceber o que se tinha passado ali, Ricardo fez uma pequena mala, deixando para trás a maior parte das roupas, que viria buscar noutro dia, quando Ana não estivesse. Quando passou novamente pela casa de banho, encontrou a porta fechada. Disse adeus, mas a barreira de silêncio que encontrou pela frente convenceu-o de que era melhor seguir caminho. Dormiria em casa da mãe nessa noite.

- Pode ficar com o troco
Desta vez Ricardo agradeceu a Deus pelo taxista silencioso que lhe enviara. Dormira mal. Passara a noite a lutar com os lençois, pensando na conversa que tinha tido com a sua agora quase ex-mulher. Não fazia grande sentido que tudo tivesse sido tão fácil. Ana não era uma mulher fácil, antes pelo contrário. Todas as fases do seu relacionamento com ela tinham sido difíceis. Tinha sido difícil conhecê-la. Ela era fútil, ele não era propriamente candidato a nenhum prémio de beleza. Só aceitou ir tomar café com ele depois de mais de uma dúzia de convites. Demorou dois meses para conseguir beijá-la. De alguma forma, o desafio tornava tudo aquilo ainda mais aliciante. No entanto, quando finalmente começaram a namorar, Ana revelou-se não a pessoa distante que até aí fora, mas uma namorada impossível. Ciumenta, possessiva, exigente, Ana juntava a todas estas inegáveis “qualidades” uma capacidade notável para o envergonhar em locais públicos. Maior parte das vezes até parecia ser sem intenção, mas havia ocasiões em que Ricardo podia jurar que via um sorriso maldoso a nascer na cara dela no mesmo momento em que o via corar.
Tentara em vão escapar à vontade dela de se casar o mais rápido possível.
Ao fim de quatro meses de namoro, estava a vê-la a entrar na igreja de braço dado com o pai, enquanto ele, mesmo sem a certeza de a amar, assistia impotente ao desenrolar dos acontecimentos. E depois aqueles três meses infernais de casamento. Juntamente com a aliança no dedo, Ana tinha ganho toda uma série de estados de humor que Ricardo nunca conhecera, nenhum deles agradável. Se o sexo não era propriamente uma constante antes de se casarem, depois do copo-de-água passara a ser uma ausência confirmada e devidamente lamentada. A cada novo dia, Ana tinha uma justificação diferente para se poder virar para o outro lado e adormecer. Começou na noite de núpcias, com um “hoje não, que o casal do quarto ao lado pode ouvir”, que deixou Ricardo estupefacto, visto que estavam numa pousada que era de facto um castelo, num quarto com paredes de pedra com um metro de espessura, num corredor em que o único quarto, para além do deles, que tinha gente, era o de um casal de 80 anos com o poder auditivo de um par de postes de iluminação. Na verdade, desde essa noite, todos os avanços de Ricardo esbarravam no livro de desculpas da sua mulher, algumas delas repetidas, nenhuma convincente. A par deste gosto pela castidade, Ana ganhara outro – endividar o marido. Nunca conhecera uma mulher tão ávida de compras. Ricardo, que ganhava bastante dinheiro, graças ao seu jeito natural para vender carros, viu-se, no espaço de três meses, rodeado de uma colecção de sapatos suficientemente extensa para calçar todo um convento de Carmelitas Descalças, ao mesmo tempo que a sua conta bancária secava de forma definitiva. E não podia fazer nada, visto que, quando casara, ela o obrigara a assinar o contrato de comunhão total de bens.
E o pior de tudo era quando ela falava. Até se casarem, Ana sempre parecera ser bastante inteligente. A partir do momento em que saíram da igreja, parecia que aqueles bagos de arroz com que levara lhe tinham afectado o cérebro definitivamente. Não mandava uma para a caixa. Os únicos momentos em que parecia ganhar lucidez eram aqueles em que o insultava. Aí lembrava-se logo de umas quantas frases o atingiam directamente onde doía. E no entanto, parecia fazer tenções de passar o resto da vida casada com ele. Aquilo era um inferno, e não dava sinais de vir a ficar suportável nos tempos mais próximos. Por isso planeara toda aquela conversa para o dia anterior, para fugir daquele casamento o mais depressa possível.
Postas as coisas em perspectiva, deixou imediatamente de se questionar sobre a atitude da sua mulher no dia anterior. Estava safo, livrara-se daquilo e, com sorte, perdia só metade do que era seu.
Nessa noite, Ricardo dormiu sossegado, achando que a sua vida mudara para melhor.

Foi com toda a calma do mundo que Ana entrou no avião naquela manhã luminosa de Junho. Era uma mulher rica. Os últimos três meses, passara-os a usar o nome e os cartões de crédito do marido para fazer uma série de investimentos ilícitos e, portanto, bastante lucrativos. Deixara vestígios que inevitavelmente conduziriam a alguém. Mas esse alguém seria Ricardo. Tratara disso pessoalmente, ao telefonar para a Policia Judiciária, dando algumas pistas sobre aquilo que podiam encontrar se procurassem bem na sua casa. Aquele pateta nem sabia o que lhe estava prestes a cair em cima. Quanto a ela, sempre tivera vontade de emigrar para um país de clima quente e praias paradisíacas.
Já sentada no seu lugar, Ana tirou uma fotografia da carteira. Na fotografia, estava abraçada ao seu marido, num cenário da mais pura felicidade. Mas o marido não era Ricardo. O marido da fotografia era Francisco. Francisco tinha morrido um ano antes. O seu carro tinha chocado de frente com um camião, numa curva em que perdera os travões. Era um carro usado, que Francisco tinha comprado pouco tempo antes. O vendedor garantira que estava em óptimo estado. O especialista a que Ana pagara para analisar o carro garantira que os travões estavam danificados, e era impossível o vendedor não saber disso. Quando ouviu isto, Ana jurou pela memória de Francisco que se iria vingar daquele vigarista que lhes vendera o automóvel, da forma mais tortuosa que encontrasse. Passados cinco meses, casou com ele.

7 da manhã, Domingo de Páscoa

Apeteceu-me começar...devagar

Gosto da forma como te mexes. Sempre gostei. Lembro-me quando ainda éramos miúdos, e saltavas à corda. Já aí eu gostava de olhar pra ti. Mas entretanto as coisas mudaram. Antes conheciamo-nos, éramos amigos, partilhávamos os berlindes, andávamos perdidos de bicicleta. Hoje passas por mim e, mesmo sabendo quem eu sou, o meu nome, o dia dos meus anos, o meu gelado favorito e o meu esconderijo de sempre, olhas para a mosca do outro lado da sala. Vou-te dar uma novidade: comprei um mata-moscas! Da próxima vez que passares por mim, vou-te dizer o que não te disse quando tínhamos dez anos. “Olá. Sabes uma coisa? Gosto de ti. Queres namorar comigo?”